segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

o grito do povo

Era pelo grito que o poeta esperava;
recebia frutas diversas e acenos do povo,
mas era o grito das moças que ele ansiava, um tanto do suado prazer.
Todavia, sempre muito distraído, seu olho buscava uma palavra lá fora,
o verbo sobraçando nos galhos.
Projetava-se através das lentes minerais com pés enraizados no hoje.
Diante da sanha apaixonada, dizia-se fraco paras as coisas do espírito que nebulosamente habitam a carne.
Gastava suas horas – as melhores, entre os mortos,
as noivas de papel e os livros que jamais escreveria.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Ele só pensou tomara

Acordar, desacordar
Sentir o cheiro do amanhã
Viver com a esperança reduzida
Abrir a geladeira, fechar
Abrir a televisão, fechar

Fecho os olhos dentro do túnel. A parede continua verde, continua escura. O mofo do banheiro atravessou-a como se fosse um barco.
Não há janela e a vida está no reverso. Um raio negro queima o céu

Acordar, desacordar
Sentir o cheiro do amanhã
Viver com a esperança reduzida
Abrir a geladeira, fechar
Abrir a televisão, fechar

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O cão da estrada

No campo – cidadestino, onde as casas perderam o chão, encostei os pés flagelados.
Perdida a luneta de encontrar cão.
Escutei risadas, dentes à mostra, mapa da pele. O prazer da boca oculto floresce.
Escola aberta.
Enchi os bolsos com pedras. Pedi pra ficar. A lua apontou o caminho do nunca.
“A terra te abraça. Segue.”
A voz não tem rosto. O asfalto guia quem não tem fé. Deus de olhos escuros.
Na estrada, os cães não ladram.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Verborhagia - Revista Eletrônica de Literatura


Nossa estimada Verborhagia chega a usa terceira edição. Lindo de se ver, lindo de participar. Mandem seus textos


Leia aqui

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Máquina (You go to my head)


Ah, máquina. Rejubila-te. Sabe tão pouco da noite, dos dias. Tão pouco de quase tudo. Terreno úmido. Pensa ao invés de sentir. Porém, apesar do temor, bate. Exulta, as vezes. Acha que está sentindo, é um pensamento, uma arritmia. Não sabe. Mas pensando pulsa. É suave como o cool jazz, ressoa como se fosse o trompete do Chet Baker. Compreende o rancor, não o ódio. Tem se esforçado. Sou testemunha. Ninguém te desconhece tanto quanto eu.

Epílogo:
Equilibrei o guarda-chuva nos dedos da mão direita passando-o de um para o outro. Segurei a chuva. Agarrei-a com força. Segui. Eu nunca paro. Nunca chego. É o meu oficio. Os pés de barro.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Intermitente blues

Sucumbe ao trabalho do verme. O peito trêmulo, a voz agarrada num fio. Nem tudo se esvai nessa tristeza. Pior é sobreviver. Vê-la esfumada no tempo como se não tivesse existido. E ela é tudo. Todo o sentimento, tudo que perdemos, os pedaços, pessoas, o lugar onde padecem as palavras. Ninguém pode mudar as estações, as folhas caem sem poder escolher. As lágrimas retornam aos olhos, o céu se refaz. Irei reescrever uma terra sem mortes, uma mansarda – pedra sem chaga. Um eu destronado, outro em mim, refém. Choverá nos campos e eu ressuscitarei banhado nesse sonho até a tua casa. Abro a grade enferrujada e subo as escadas, joelhos esfolados no perdão.

Só então perceberei o rosto macilento e cansado...

sábado, 6 de setembro de 2014

o nó

Tenho esperado que desate o nó. Corro o risco de ficar à deriva, de não fixar-me aqui no bloco de pedra – de não estar neste corpo.

Daqui alguns anos terei o rosto macilento e cansado. O tempo é elástico só na cabeça de quem não o possui. Entre o mundo e as pequenas misérias, elejo as minhas. E nisso reside minha ruína. Há a escolha correta (a própria escolha). A força que direciona, diz o que é. Entretanto, existe a perna, a outra perna que me sustenta. A terceira. Ela é o corpo. Todo o corpo. O resto é osso. Mas essa perna é forte, tem a essência do movimento – crua, violenta, instável. Ela é carne. A força estranha que consome e navega. Do outro lado o livro. A luz que cura. Preciso ser curado para seguir a palavra, verter sangue. É a voz do livro contra o movimento da perna. Um evento que não pode ser evitado. Ele irá acontecer - precisa acontecer, assim manda a natureza. Dizer sim e negá-lo, dizer sim e negá-lo. Tudo dentro, tudo ali crescendo e secando, morrendo rápido, lentamente renascendo. Sou apenas este corpo. Não há revelação. Esse corpo sagrado que sofre mutilações, que nega o que lhe há de mais humano. Só a cabeça vive. Devo negá-lo. Dizem que essa vida acaba como se nem tivesse começado. Porém, é apenas no fim que percebemos. É só quando o tempo se gasta, quando a coragem termina. Um dia repeti tudo que fizera no dia anterior e assim fui aprendendo os gestos e repetindo-os sem saber o que fazia.

domingo, 6 de julho de 2014

A copa do mundo é nossa

Sentou para ver o jogo. Era Copa do Mundo, mas não parecia. Uma formiga circulava ao redor da xícara de café. Ele desejou que ela morresse queimada ao encostar na xícara. Imaginou a cena de diversas maneiras, porém todas lhe pareceram inverossímeis. Pensava muito em morte. Na verdade, ao longo do dia, desejava muitas vezes que muitas pessoas morressem. Todavia, esses pensamentos recorrentes não eram coisa real, careciam de maldade. Era uma raiva. Quase nada. Não se julgava má pessoa.

Levantou-se para ir à cozinha, porém antes entrou no quarto do escritório e viu Hannah deitada no sofazinho com um livro aberto no peito. Esticou o pescoço a fim de ver o título, depois olhou a estante repleta de livros, alguns caindo das prateleiras, uma pilha no chão. Achou aquilo estúpido, balançou a cabeça. Serviu-se de ambrosia. Ao retornar à sala teve o impulso de olhar mais uma vez Hannah. Continuava deitada. O livro aberto sobre o peito e o braço largado no chão. A cabeça pendia um pouco para a esquerda. Não ressonava ou arfava, seu corpo todo era silêncio. Notou a boca entreaberta. Pensou em tocá-la para conferir a temperatura, talvez... Desistiu.

Sentou-se para continuar a ver o jogo, afinal era Copa do Mundo. A formiga jazia ao lado da xícara como se fosse um pontinho preto, enroscada em si mesma. Parecia sujeira. Naquele momento soube que era uma pessoa ruim.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Chove.
A grama jaz afogada, cachorros molhados e barcos de papel navegam em córregos infinitos. Arrasto a sola dos sapatos por entre inundações - ruas do passado.
É dia.
A cidade repousa no fundo abissal de um pesadelo. Enquanto isso, amontoados, esperamos.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A verdade e outras encenações

Banheiro – interna.

Espaço branco minúsculo, sem pia, vaso sanitário da mesma cor das paredes. A personagem entra rápido, levanta a tampa do vaso, a minissaia e senta. Deixa a porta entreaberta. O fluxo de urina é longo e prazeroso, traz alivio à medida que sai. Ela pensa, porém um pensamento não tem forma, e ouve Lou Reed cantando Coney Island Baby. Lembra-se da outra personagem, que ficou na sala, e que deveria dizer uma fala do roteiro. Nada lhe vem à mente. Em voz alta:

- Os pensamentos não têm forma. Nunca saberemos o que dizer e para quem dizer o quê. Na verdade tudo já está dito.

Destaca um pedaço de papel higiênico, se limpa e sai sem puxar a descarga.

domingo, 25 de maio de 2014

Vampiro

Então, diante de uma plateia pouco empolgada, recebi de minhas próprias mãos o Oscar de melhor ator coadjuvante. Em silêncio me perguntava se este outro eu que me sorria azedo, era o melhor protagonista ou se estávamos ambos destinados à figuração. Entretanto, na hora do discurso, improvisei:
Agora, a essa hora, copulam o céu e a terra, corpos dançam boleros do desamor, castos juram vinganças de sangue e cegos fazem promessas que jamais poderão cumprir. Pois essa é a natureza dos amantes.
Depois, Caetano Veloso cantou:
"Você é uma loucura em minha vida,
Você é uma navalha para os meus olhos,
Você é o estandarte da agonia que tem a lua e o sol do meio-dia."
Por isso, eu sou o vampiro.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

sobre nós

Enfim, sós.
Pelo vidro iluminado a chuva escorre,
Debaixo do poste, cultivo ideias sobre nós.

Em margens opostas esperamos.
A roupa aperta, a palavra falta,

Não são apenas anos, é o tempo.
Quando esse futuro virar passado,
Não bastará.

Porque tua imagem - olhos que me sentem,
Terá se diluído em possibilidades,
Páginas em branco.

terça-feira, 13 de maio de 2014

A cidade também é feita de pegadas

Caminhando pela cidade, percebi, com certo alívio, que não somos este lugar que ocupamos, nem ele é o mesmo para aqueles que o compartilham conosco. Não somos, tampouco estamos juntos. Partilhamos o ínfimo dessa substância cujo nome convencionamos chamar realidade, talvez lhe caísse melhor concretude. Incapaz de compreender os outros, não compreendo a vida, pois um movimento implica no outro como se fossem pequenas caixas dentro de outras maiores, ou o cubo mágico e sua dinâmica integrada. Todavia, não sou pessimista, apenas desconfio que venho falhando por existir pouco. Igualmente não desejo ser leviano. Tomar café, ler livros e escrever frases não constituem em si prova de humanidade, ou prova de uma coisa qualquer, um sentido objetivo. A vida, ás vezes, pode ser apenas um suspiro preguiçoso ou uma tarde de sono despreocupada. Não suporto deixar-me caído no sofá, de boca entreaberta, sentindo o vagar incipiente das horas. Porém, de modo arbitrário, o tempo me ultrapassa. O sol sucumbe à noite e o cosmos segue impenetrável seu ritual de morte. Então, dou a mim esta tarefa de permanecer de olhos abertos entre a descrença e a fé, gestando uma espécie de renascimento. Atento ao movimento sutil das palavras.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Os Indesejados

Creio que foi numa terça-feira. O dia estava quente, sol de arder a pele. Não conseguia me concentrar na reunião, o barulho da máquina de cortar grama ocupava todo o espaço. As reuniões da escola eram um massacre. Porque havia me tornado professor? Poderia ter sido médico, assaltante de banco, zelador. A memória não deixava recordar. Não parecia terça-feira, nem que estávamos na escola, nem que fosse grama sendo cortada. A semana começava ali naquela reunião batendo ferro com violência. Era a violência do dia. Os indesejados estavam por todos os lados, proliferando em abundância pelas cercanias do bairro, cuidando carros, pedindo cigarros. Restava-me apenas entregar a raiva e o desgosto às horas.

Desci para tomar um café e encontrei a mesa vazia. Farelos indicavam que eu havia chegado tarde. Sobrara um pouco de café preto. Os demais professores se acotovelavam na salinha contigua ao saguão, a única com ar condicionado. A reunião terminara, então fui pegar o carro na praça em frente à escola. O guardador de carro me chamou de irmão e pediu um trocado. Já o conhecia, talvez até soubesse seu nome, creio que se referia assim a todos: irmão. Não tinha importância. Disse de forma ríspida, porém, acredito que sem raiva, que não era seu irmão. O que teria mudado se eu simplesmente assentisse, ou, talvez, para reforçar aquilo que ofereciam a ele, tivesse apenas ignorado? Neguei também o dinheiro e bati a porta do carro. Em seguida ouvi um murmúrio, um ruminar de palavras: vou te enfiar a faca no bucho. Não sei ao certo. Deduzi que fosse algo como um dia te enfio a faca no bucho. Uma ameaça. Na hora tive mais raiva do que temor. Poderia ter saído do carro e lhe dado umas bofetadas. Era menor do que eu e magro do uso de drogas. Um alucinado. Mais tarde diria a mim mesmo que não havia lhe negado o direito de me chamar de irmão pelo simples fato de sermos negros. Será que ele havia me dito aquilo por isso? Por uma solidariedade de raça? Na hora nada me veio além de um desgosto misturado com impaciência, com um estar cheio disso, dos intrusos, dos que cobram e fingem estar pedindo. Entretanto, achava que comigo sua simpatia era mais forçada porque deveria parecer natural a existência de um laço entre nós. Bati a porta do carro. Quem ele pensava que era para me ameaçar?

Fui até o shopping almoçar ainda que não gostasse da impessoalidade luminosa do lugar. Todavia, por preguiça de estacionar, caminhar, procurar outro lugar para tomar café e ir ao banco, acabava indo lá. Essa era a armadilha idiota do shopping: oferecer comodidade aos acomodados da vida. Encontrei Camila. Não estava com rugas e papadas horrendas como se tivesse passado os anos bebendo e fumando por noites a fio. Naturalmente lhe faltava na tez o brilho característico da juventude, entretanto e, sobretudo, continuava linda. Fazia mais de quinze anos que não a via. Trazia na cabeça a lembrança do nosso último encontro: ela me abandonara. Fiquei sozinho no restaurante. Não voltou mais. Era ridículo pensar naquilo, contudo, de fato era a única coisa que restara dela. Cumprimentou-me com pouco entusiasmo, como se não estivesse conseguindo atribuir um significado a minha figura. Tenho certeza de que também pensou única e exclusivamente naquela noite. Dissemo-nos as coisas habituais: que quase não havíamos mudado, que fazia tempo, ah! a vida. Enfim, tudo bem. Ela tinha um filho. Não sou casado. Não tenho filhos. Vamos tomar um café? Tenho que pegar o Guilherme daqui a pouco. Vamos nos encontrar outra vez. Eu preciso te dizer um negócio: Vamos pra cama de novo. Eu não esqueci, só mais uma vez. Isso não tem importância. Vamos pra cama. Nós éramos jovens. Tchau. Me liga. Não. Um dia desses, quem sabe.

Camila partiu de olhos semicerrados após ter me negado pela segunda vez. Tudo foi tão rápido. Na cafeteria ela pediu um espresso enquanto tomei um pingado; de relevante dissemos pouco. Não havia uma pergunta formulada, concreta, que fosse traduzível em palavras. Ela não ia encontrar ninguém, continuava fútil como sempre fora. Comprar lhe emprestaria a falsa impressão de saciedade. É o que todos fazemos. Podia comprar qualquer coisa e aquilo lhe ocuparia um tempo de vida, meia hora, talvez duas ou mais se considerasse também o quanto gastaria até chegar em casa. Pegaria nas mãos o que havia comprado, fosse roupa, um livro ou bolsa, e o contemplaria com uma espécie de súplica desencantada e inútil. Depois o guardaria no território das coisas a espera da oportunidade de serem utilizadas.

Creio que devia ter feito mais alguma coisa antes de voltar para casa, talvez mais uma reunião em outra escola. Uma vez em casa, fechei todas as janelas e deitei no tapete da sala. Nunca fui nenhum fã de Belchior, porém a letra de uma música veio á cabeça. Tentei cantarolar: “se você me perguntar... de olhos abertos eu lhe direi”. Talvez o mendigo fosse me matar dali a dois. O mendigo irmão. “Amigo, eu me desesperava”.

Pela manhã, quando acordei, não pensei em que dia era e nem no que deveria fazer. Peguei o carro e rodei mais de uma hora, talvez muito mais, fazendo um esforço para recordar o lugar. Tinha certeza que podia encontrá-lo apenas com o que guardava na memória. Enfim estacionei o carro em frente a uma casa geriátrica. Ela era grande e antiga, repleta de árvores ao redor. Tinha um aspecto quase bondoso. Entrei na casa e na recepção perguntei por Elizabete. Chamaram uma mulher que me levou até a varanda onde duas senhoras conversavam. No breve caminho que conduzia até lá me questionei se ela me reconheceria, ou ao contrário, se eu ainda era capaz de reconhecê-la. Enquanto estivemos juntos, ambas sorriram o riso da irrealidade e falaram palavras desencontradas. Aceitaram minha presença de bom grado. Na saída prometi retornar, mas elas não se importaram. Pensei que devia existir outra coisa, uma outra vida que até então se mostrara insondável. O guardador de carros viveu mais alguns anos até morrer de overdose, porém, antes, me enfiou a faca na barriga três vezes até ver meu corpo se debater no chão.

domingo, 16 de março de 2014

Noturno

Porque existe outra coisa que somos nós – latido de cão, música no rádio, gelo na perna; sempre outra coisa que não essa. Um pouco de solidão, um poema em folha rasgada, escrito a lápis - letra tremida. Confessa-me um sentimento, uma ideia jocosa de amor ou uma palavra ordeira como que saída da tábua da lei. Busco-a sem apelo, sem a exigência irmã da dor, sem nenhuma dúvida ou desrazão. Pois que o faça. Retardo a noite aguardando o sono, aperto o lápis entre os dedos e declamo uma prece altissonante.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Pierrot e Colombina

Chove desde muito cedo. Sinto uma espécie de preguiça, ou temor, de sair de casa. O mar é a maior parte do tempo da praia de modo que algumas centenas de gotas não deveriam me incomodar. A chuva conversa com o vento, que nada mais é do que uma melancolia tranquila que nos esforçamos para tirar do corpo. Em essência, a praia é de uma quietude que nenhum alarido pode sufocar, basta fechar os olhos e senti-lo. Entretanto, não dispenso o abrigo sincero do teu colo, menos ainda os olhares silenciosos que trocamos, pois o amor se desfaz e refaz constantemente. Debaixo do teto da casa de tijolos à vista, vislumbramos uma existência sem perdas nem ameaças, e rezamos para que o homem do mar proteja nossas esperanças. Nesse sonho, igualmente silencioso, dormimos. Ao despertar acaricio de leve tuas costas e tenho a certeza de que te amarei para sempre. Desperto novamente e fico deitado ouvindo a chuva e o rumor das ondas dizerem que ainda é tempo de sonhar.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Entre o mar e o amanhã

O primeiro escrito do ano só poderia ser sobre a praia e o mar, pois tudo na vida é necessariamente sobre o mar e a praia. Indissociáveis no idioma da minha memória afetiva. Não tenho nada para falar do ano que passou, nenhum balanço, e ao contrário do que isso possa dar a entender foi um bom ano. Todos os anos são agridoces, maravilhasos e diabólicos, por isso amo o isso que se apresenta. Já vivi anos ruins, uns péssimos, no entanto os últimos me parecem felizes na soma geral das partes: verão e inverno. Tudo se divide entre verão e inverno, em estar suado ou tremendo de frio. Escolho o calor eterno, ainda que o calor férreo da cidade nos castigue. Então deus e seus asseclas engenheiros inventaram a praia que é uma espécie de sonho. Um lugar mítico onde residem todos os nossos ancestrais nas vestes plácidas e turvas do mar. Não me digam que a praia é ruim ou suja, que junta gente demais, muito pobre, carros, esgoto a céu aberto, água marrom e gelada. Não. A praia é o único lugar não inventado, não construído pela mão canhestra do homem, que ainda guarda algo de genuíno e selvagem. Ali está o mar, deus netuno, las olas (rainhas) e o boto. No mar não há espaço para fingimentos; não estar com medo quando na verdade estamos. Em seus domínios só há aquela ligação inconsciente-espiritual, espécie de cordão umbilical que nos liga a fonte da vida. Tudo é força, imensidão. Nada do que somos tem significado - o falso que somos, os personagens que carregamos, as crenças a respeito de nós mesmos. O Mar é o ano novo ao mesmo tempo em que é repetição, ondas que executam sua tarefa eterna sem nem saber qual é. O Mar sabe, pois tudo necessariamente é ele.