sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

bolo recheado com creme de chocolate meio amargo

Para Dany Rocha.

Comprou o bolo do próprio aniversário e 2 litros de coca-cola. Se não fosse ele mesmo a fazer isso ninguém mais o faria. Eles é que não fariam, contudo comeriam o bolo e reclamariam que foi pouco, quase não deu pra repetir, e que faltou refrigerante. E não podia ser qualquer refrigerante, tinha que ser coca-cola. Sem falar nos salgadinhos, não podia esquecer de buscá-los. Ninguém lhe daria presente algum, nunca davam, ainda assim apareciam todo ano naquela mesma data para lhe dar os parabéns. Depois começavam as reclamações, o bate boca, barulho de vidro quebrando, possivelmente copos, e então partiam apressados sem muita cerimônia.

Não conseguia captar, nem mesmo superficialmente, a natureza do afeto que lhe ofereciam, se é que podia interpretar dessa maneira as palavras e gestos que dirigiam a ele. Não, aquilo não se parecia com afeto, era mais como uma manifestação, ou reafirmação, da existência de um laço comum entre eles, uma espécie de dívida que os unia. Pareciam usurários que estavam ali para cobrar o que haviam lhe dado durante os anos de infância.

Talvez estivessem lhe cobrando as roupas que haviam comprado quando ele era criança, mas que logo depois não serviram mais perdendo assim a utilidade, ou as despesas com médicos: pediatras, oculistas, ortopedistas, além das custas com remédios. Ainda nessa conta estavam creditadas as mensalidades da escola, do curso de inglês e da hora dos professores particulares. Porém, mais do que qualquer outra coisa, mais do que os aborrecimentos e as noites em claros, estava ali somado o constrangimento e a vergonha que ele os havia feito passar com seu jeito de menino “desajeitado”, como se fosse um desamparado sem pais, um enjeitado. No entanto, talvez, nada disso correspondesse com exatidão aos fatos passados, poderia muito bem ser apenas parte de uma manobra para lhe infundir um sentimento de culpa, de obrigação intransponível. Bom ou ruim, não importava, havia entre eles uma dívida ancestral, ontológica, de gratidão aos de sangue.

Todos sentados no sofá da sala aguardando um pedaço de bolo e um prato de salgados, ávidos pela ração, igual a cães. Batiam talheres, derrubavam comida no chão, usavam dois, três, copos diferentes, vociferavam e agiam como se ele ali não estivesse. Antes de adentrarem no apartamento estendiam-lhe a mão, distribuíam tapinhas nas costas, as mulheres dois beijinhos na face, e o empurravam contra o marco da porta invadindo a casa como se fossem vacas no curral. Deixariam o banheiro imundo, o chão da sala pisoteado de bolo, alguns copos quebrados e era bem possível que roubassem alguma coisa, qualquer coisa, por mais insignificante que fosse. Um cd, um cinzeiro, uma caixa de fósforos ou até mesmo o jornal do dia anterior. Afinal, quem eram aquelas pessoas?

O homem apoiou o bolo no antebraço e com a outra mão que estava livre agarrou a sacola com a coca-cola. Abriu a porta do carro e colocou o pacote no banco do carona e a sacola no chão. Acendeu um cigarro e o fumou até pouco mais da metade, depois o deixou escorado no canto da boca. Como se fosse um cirurgião abriu o papel que protegia o bolo, tirou a bituca dos lábios e a enfiou até que ela desaparecesse na cobertura branca de glacê. Lambeu os dedos que havia lambuzado um pouco e fechou o embrulho com a mesma precisão. Não podia esquecer de pegar os salgadinhos.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

2011

Algo novo que nos transporte para fora da pedra bruta e cimento.
O milagre da transformação.
Novo Ano. Caminhei uma quadra e vi duas pessoas dormindo na calçada escaldante de uma tarde de verão em Porto Alegre lá pela casa dos 40º graus. Um deles dormia exatamente no fio da calçada, no limite que o separava do abismo do asfalto. Sonhava em posição fetal.
Renascimento.
Ano Novo, velhas obsessões. Os mendigos, as mulheres, os transeuntes insones, os anônimos dormitando no ônibus.
O mistério da vida.
Na praia, na virada do ano novo, no marco zero das nossas vidas, pensei: não há motivos para não celebrar esse momento. Molhei os pés na água salgada do mar, olhei o céu em polvorosa e agradeci. Senti uma felicidade silenciosa. Tudo é mistério, nada do que está aqui me pertence. A vida é o grande sonho de Deus e sua trupe de mendigos.