terça-feira, 31 de maio de 2011

Mrs. Parker


Mrs. Parker tem uma página na internet, escreve poesias e críticas literárias. A foto do seu perfil lembra a de uma pin-up; cabelos curtos e negros, ar intelectual e idéias sedutoras. O lay-out do site é sóbrio, elaborado em detalhes, nada destoa, nem formas, nem cores. Só publica quando tem vontade e não exclui os comentários pejorativos, eles a divertem. Mrs. Parker não tem coluna de seguidores, achou desnecessária aquela ferramenta mal enjambrada de aferição de popularidade.
- E quem se importa com isso? Sugere com ar blasé. E quem se importa com isso?

Mrs. Parker zomba da minha insegurança. Ao vê-la tão cheia de si pensei em fazer o mesmo no meu blog, arrancar a coluna de seguidores. Afinal, quem precisa de seguidores se nem eles me lêem? O que eles significam para o meu ego faminto de aclamação pública? Ter seguidores soa um pouco como um messianismo fascista. Mussolini e Antônio Conselheiro é que possuíam seguidores. Eu quero ser lido, basta. Porém, na mesma medida em que me senti tentado a excluí-los, tive medo. Um medo obscuro e infundado, desses irracionais. Como assim excluir os seguidores? Meus seguidores! Com tanta gente no mundo para ser deletada, logo eles?

Mrs. Parker, segundo boatos, alcançou um tipo de status intelectual que já não precisa de nada além de seus próprios comentários, dos teóricos russos, de Borges, Pessoa e Shakespeare. Diz que a literatura lhe basta. Nada mais. Nem mesmo sexo ou coquetéis em noites de autógrafo. Olho para os meus vinte seguidores com um misto de perplexidade e paixão. Vinte. E dentre eles estou eu a seguir-me como se fosse um duplo, leitor deste tal Marcelo, que também é um outro. Não posso excluí-lo.
- Eu comeria carne humana, ela me disse. Maldita! Eu a seguiria se pudesse.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Bassini Letters

...andei rasbiscando umas linhas.Ah! o tempo.

Bassini Letters

Acordei com a impressão de que já havia despertado naquela manhã, como se estivesse acordando pela segunda vez. Uma caixa dentro da outra. E era noite. Apoderou-se de mim um desassossego. E se por fim eu houvesse me dado conta de que essa vida não é a minha, que esses lugares, essas coisas, não cabem em mim? Nada disso me pertence. Talvez fosse esse meu desejo mais secreto; ter outra vida só pra vivê-la de paixões, deixar que se consuma essa vontade de não ser mais eu, de não estar mais aqui. Não sentir mais o ranço das horas, nem o peso dos dias que engolem vidas e deságuam sempre no mesmo recomeçar acabrunhado. Pensar que todo amor é possível, logo válido, que nada termina tão somente porque nos tornamos íntimos demais, e sem mistérios.
Acordei com essa impressão de embriaguez a seco e cãibras nas pernas. Pois agora não quero dormir, tenho medo de despertar desse torpor, descobrir que esse sonho é tudo o que resta pra sonhar.

Desperta o velho ancorado navio e deixa-me á deriva no mar.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ernesto Sabato (1911-2011)


Faleceu na madrugada do último sábado o escritor argentino Ernesto Sabato, autor do monumental Sobre Heróis e Tumbas. Deixo aqui parte do belo post do blog da Companhia das Letras.
Um trecho de A resistência:

É impossível o homem permanecer humano a essa velocidade; vivendo como autômato, será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão indissociável da vida do homem quanto a sucessão das estações para as plantas ou para o nascimento dos bebês.

Estamos a caminho, mas não caminhando, estamos a bordo de um veículo sobre o qual nos movemos sem parar, como uma grande jangada, ou como essas cidades orbitais que dizem que haverá no futuro. Já nada se move a passo de homem. Por acaso algum de nós ainda caminha lentamente? Mas a vertigem da velocidade não está somente fora, nós já a assimilamos à mente que não pára de emitir imagens, como se também ela fizesse zapping; e talvez a aceleração tenha chegado ao coração, que já pulsa em ritmo de urgência para que tudo se passe rápido e não permaneça. Este destino comum é a grande oportunidade, mas quem se atreve a saltar fora? Tampouco sabemos mais rezar, porque perdemos o silêncio e também o grito.

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Na vertigem da velocidade, tudo é temível e o diálogo entre as pessoas desaparece. O que dizemos uns aos outros são mais números do que palavras, contém mais informação do que novidade. A perda do diálogo sufoca o compromisso que nasce entre as pessoas e que pode fazer do próprio medo um dinamismo capaz de vencê-lo e dar a elas maior liberdade. O problema mais grave, porém é que nesta civilização doente não há apenas exploração e miséria, mas também uma correlativa miséria espiritual. A grande maioria não quer a liberdade, tem medo dela. O medo é um sintoma do nosso tempo. A tal ponto que, raspando um pouco o verniz, é fácil perceber o pânico que subjaz nas pessoas que perseguem as exigências do trabalho nas grandes cidades. A exigência é de tal ordem que se vive automaticamente, sem que os atos sejam precedidos de um sim ou um não.

A maioria da humanidade é empregada de um poder abstrato. Há empregados que ganham mais, e outros que ganham menos. Mas quem é o homem livre que toma as decisões? Essa é uma pergunta radical que todos temos de nos fazer até escutar, na alma, a responsabilidade a que somos chamados.

Acredito que é preciso resistir: esse tem sido meu lema. Hoje, contudo, muitas vezes me pergunto como encarnar essa palavra. Antes, quando a vida era menos dura, eu teria entendido por resistência um ato heroico, como negar-se a continuar sobre este trem que nos leva à loucura e ao infortúnio. Mas pode-se pedir às pessoas tomadas pela vertigem que se rebelem? Pode-se pedir aos homens e às mulheres do meu país que se neguem a pertencer a esse capitalismo selvagem, quando eles têm de sustentar os filhos e os pais? Se eles carregam tal responsabilidade, como poderiam abandonar essa vida?

A situação mudou tanto, que devemos reavaliar com muita atenção o que entendemos por resistência. Não posso lhes dar uma resposta. Se eu a tivesse, sairia por aí como o Exército da Salvação, ou como esses crentes delirantes ― quem sabe os únicos que realmente acreditam no testemunho ―, proclamando-a pelas esquinas, com a urgência que nos deveriam dar os poucos metros que nos separam da catástrofe. Mas não. Intuo que é algo menos formidável, mais modesto, algo como a fé num milagre, o que quero transmitir a vocês nesta carta. Algo condizente com a noite em que vivemos, não mais do que uma vela, algo que nos ajude a esperar.