segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

desvanecer-se

Não gosto de dormir. Reluto tanto quanto posso, porém o corpo cede. O problema em si não é o sono, nem o corpo. Não se trata de deitar e desligá-lo. Tampouco são as coisas que eu poderia estar fazer durante esse tempo morto. O drama está na velocidade com que o ato de dormir coloca-me novamente na roda perpétua do cotidiano, de frente à mecânica reprodução dos atos dos dias anteriores. Tira-me o aqui e agora, lança-me no futuro, nas garras de uma força inescrutável. Tento ficar acordado e permanecer o máximo que aguento dentro daquele mesmo dia. Sinto uma espécie de liberdade, armistício do mundo lá fora. Sentado no sofá, iluminado pelo abajur japonês da sala, leio página após página como se estivesse a competir. O corpo insiste em inquietar-se, torna as almofadas duras, deixa as costas arqueadas. Palavras transfiguram-se em imagens, páginas que se descolam do texto, algo que se intromete em meus pensamentos. A cabeça pende e aquele momento - que não pode definir-se em minutos, ou em metros, em números, que nem mesmo sei o que é - apaga-se aos poucos em movimentos intermitentes. Sou arrebatado para dentro de um tempo sem amarras, uma espécie de onda que varre a areia e depois reflui. Quase sempre acordo antes de o relógio despertar, o corpo parece sem vida, pesado. O cansaço é sentido como uma derrota. Talvez eu nem tenha despertado ainda e seja as palavras que o homem que luta contra o sono agora lê, ou apenas uma vaga ideia pensada por alguém.

sábado, 5 de outubro de 2013

O Adversário

Moisés desligou o telefone. O segurança tinha certeza, não estava enganado. Aquilo já durava um mês e na última semana havia sido diário. O desgraçado ficava lá parado em frente ao banco segurando a pasta de couro.
João Batista tinha quarenta e poucos anos, seis a mais do que Moisés. Desempregado, solteiro. Cabelos ralos anunciando a calvície. Morava com a mãe e passava os dias escrevendo. Aos quinze disse que seria escritor. Disse repetidas vezes e se pôs a escrever ano após ano. Enchia cadernos e folhas e mais folhas com seu rabisco nervoso. Os familiares fizeram tudo o que estivera ao alcance, inclusive acreditar que João publicaria um livro. Moisés dizia na escola que o irmão era escritor, entretanto, como o livro não saía nunca, parou de falar em João. Antes, porém, investiram nele dinheiro e fé. Pagaram cursos, oficinas literárias e até viagens. O livro não chegava ao fim, era o que ele afirmava. Depois, naturalmente, vieram as cobranças para que João mudasse os planos e investisse em outra carreira - que trabalhasse, fizesse algo que pelo menos lhe pagasse o cigarro. E, a partir disso, o que era problemático tornou-se como ferrugem encruada. João tornou-se personagem de si mesmo, a própria história que escrevia, a qual ninguém conseguira sequer ler.
Naquele dia Moisés não saiu do banco nem para almoçar e ficou quieto em sua mesa. No entanto, após receber o telefonema do segurança, sentiu-se como se agredido por força irracional: seu irmão estava lá e chamariam a policia caso não saísse. A coisa era séria agora, o gerente avisava. De início João Batista ficava em frente ao banco apenas alguns dias da semana e durante pouco mais de uma hora. Então aumentou a frequência e a duração do tempo em que lá permanecia. Moisés ao ver o irmão teve mau augúrio, boa coisa não saía dali. João nada disse em nenhuma das vezes. Nada, tampouco o cumprimentou. Olhavam-se apenas. Ingenuamente, pois consternado, Moisés confessou aos colegas que aquele homem era seu irmão mais velho. Por fim, depois de muitas reclamações e desconfiança dos funcionários, a polícia seria acionada, caso Moisés não solucionasse o problema. Desceu os degraus do segundo andar e ao chegar ao térreo olhou para o saguão como se quisesse ter certeza de que todos vissem o que estava prestes a fazer, para que sentissem um pouco da sua própria humilhação. Passou pela porta giratória - percebeu o quanto estava quente na rua. A claridade intensa da tarde era como uma espécie de ajuste de nitidez aos olhos. No contraluz viu João Batista, a indelével pasta de couro, porém a barba feita e os cabelos cortados. As roupas pareciam novas. Estou pronto, disse. Pronto pra quê? retrucou o irmão. João Batista tirou da pasta um maço de folhas, centenas, todas rabiscadas e as jogou para o alto. As folhas se espalharam multiplicadas pelo vento. Moisés correu pela rua atrás delas, tomado por impulso, não de salvá-las, mas talvez de voar. Correu, deu saltos no ar, ajoelhou-se no asfalto. João Batista caminhou por entre os carros parados e se desfez também da pasta de couro. Moisés passou o resto da tarde juntando as folhas que conseguiu recuperar. A noite leu as páginas que o irmão escrevera. No dia seguinte, às sete da manhã, João Batista acordou. Banhou-se e tomou café em companhia da mãe. Antes das dez horas já estava no banco, sentado no guichê ajeitando o dinheiro do caixa. Moisés acordou no mesmo horário que o irmão, beijou a mulher e saiu de casa com a pasta de couro e as folhas do romance debaixo do braço.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Da calçada

Andando pela calçada estreita de uma rua do baixo centro, avistei um preservativo masculino usado – existe um nome muito mais econômico para isso. Enrolado em si mesmo, abandonado na entrada da garagem. Será que alguém trepou ali na noite anterior? Ali? Vulnerável, ereto, sem nem ao menos se recostar em alguma coisa? Segui caminho e a uns 20 metros à frente estavam dois guarda-chuvas jogados ao chão perto de um poste. Guarda-chuvas idênticos, siameses, talvez deixados na calçada ao mesmo tempo. Os dois estourados com as hastes retorcidas. Imaginei que deviam pertencer a um casal de gêmeos. Mais uma calçada transposta e vejo um poste tomado de sacolas plásticas de lixo, e, ao lado, uma camiseta amarela de criança em bom estado. Estava em uma das sacolas e deve ter escapado. Duvido que a criança tenha a colocado ali. Em bom estado. Chamou-me à atenção.
No cruzamento da rua com a avenida, nos fios que também se entrecruzam, um par de tênis sobraçava dependurado pelos cadarços. Um all star preto. Atravessei apressado e pelo resto daquela rua nem tão longa que desemboca em outra avenida transtornada de carros, um rastro de lixo se acumulava pelas calçadas e postes como se tivessem brotado da terra. Marcas indeléveis da nossa presença, do que fazemos e somos. Um tanto de vida esquecida ou tão somente trocada. Uma coisa a substituir outra: lembranças, pessoas, palavras. A cobra que engole o próprio rabo. Acúmulo e desperdício. Uma sociedade inteira orientada pelo principio do consumo e do descarte. E devemos fazê-lo em ritmos industriais. Talvez um dia a Terra venha a nos devolver isso que estamos lhe obrigando a engolir. O lixo será nossa herança, um legado puro e autêntico da nossa identidade e tempo. Enquanto isso, caminhamos. A rua é o palco da cidade onde os encontros se tornam possíveis, em que afluem caminhos e os estranhos se reconhecem. Os objetos e restos jogados nas calçadas ainda nos pertencem, carregam a presença de quem por ali passou. Talvez a nossa história de homens modernos seja recontada pelas gerações futuras através do lixo. Quem sabe até um museu dos homens catadores. De forma assustadora o número de moradores de rua aumenta e um estranho paralelo se estabelece entre eles e a calçada: descartamos tudo que é indesejado, até pessoas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A Metafísica do Tênis

Terminei a leitura do artigo sobre a final do torneio de Wimbledon entre Federer e Nadal. Antes de prosseguir com o texto preciso fazer uma correção: o artigo se refere a final de Wimbledon de 2006 e não de 2005 como, de forma displicente, eu havia afirmado anteriormente. Em princípio apenas desatenção.
Contrariando a expectativa gerada, o autor não revela quem ganhou o torneio, aliás, o abandona solenemente para discorrer sobre o âmago do tênis moderno. E faz jus a proposta do texto, pois se fosse apenas sobre a partida e o resultado, bastava procurar no Google. Não é à toa que o artigo chama-se “Federer como experiência religiosa”. Manobra astuta de DFW – David Foster Wallace, o autor – fisgar o leitor nas páginas iniciais com a promessa de uma crônica vibrante e fiel do jogo. O escritor é bastante didático quanto à explicação da mecânica do esporte, fruto de sua experiência como tenista amador na juventude. Pude compreender o que é uma bola cheia de “topspin” e a definição do estilo “power-baseline”. Entendi um pouco melhor o que faz Federer ser considerado uma lenda, para muitos o melhor jogador da história do tênis. Ao vê-lo em quadra tinha um pouco essa intuição; a beleza inexplicável de alguns golpes e a aparente facilidade e despretensão com que faz aquilo. Mas o que interessa a DFW está além, na experiência metafísica ao assistir o suíço jogando. O que faz Federer ser Federer é tudo aquilo que não cabe nas possibilidades concretas de explicação, ou seja, o treinamento, o senso cinestésico, condicionamento, estratégia, agilidade, entre outros. Está no modo como ele congrega todos esses aspectos e coloca-os em funcionamento, no ato singular de reconciliar a força e a graça, o humano e aquilo que o excede. Talvez a intenção do artigo fosse justamente essa: transcender a mera experiência física do ato da leitura. Assim como minha crença na literatura, não sua função, da possibilidade de reconciliação entre o humano e o sagrado. Nada de deuses ou religiões, cultos e santos, apenas o mistério da própria vida. Este algo pleno e etéreo que sempre nos falta ou escapa, engolido pela força bruta da matéria. Saber o resultado do torneio de Wimbledon de 2006, ou 2005, definitivamente não fará a menor diferença, mas ter lido o artigo sim. De agora em diante assistirei aos jogos à espera de um “Momento Federer” de revelação.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A Medida do Mundo

“Rigorismo” - esbravejou o pai. Ainda que não fosse um brado de guerra era pleno de revolta, porém sem muito alarde para não constranger as filhas. Estavam apenas dois minutos atrasados pelas contas do pai, ou seja, tecnicamente é um atraso, mas, convenhamos. Proibiram a entrada das meninas, dessa forma perderiam os dois primeiros períodos e a prova. Isso mesmo; perderiam a prova por dois minutos de atraso. Culpa do trânsito, disse o pai. “Hoje em dia, com esse trânsito, ás vezes se chega dez minutos antes, ás vezes dez minutos depois”. Confessava a impotência diante dos fatos. Inflexível, a secretária afirmou que as supervisoras não permitiram a entrada das meninas. Teriam de esperar. “Rigorismo.” Dessa vez a voz saiu vacilante como se na verdade anunciasse que ele iria se retirar logo em seguida, o que acabou fazendo depois de um sapatear um pouco em frente à porta. As garotas sentaram-se num banco próximo a entrada, disposto estrategicamente para visitantes e retardatários.
As regras são aplicáveis aos outros, mas não a nós e aos nossos. Diz o provérbio: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Nada além do óbvio, ainda que ele seja ardiloso.
Talvez o homem tenha voltado para casa remoendo a ideia de que se tivesse imposto sua prerrogativa de cliente, seria atendido, de mais a mais o caso nem poderia ser considerado uma exceção à regra; antes uma questão de bom senso. Duas filhas - não pagava pouco à escola, deveriam levar isso em conta. Isso era o que estava implícito nos seus passos inquietos, no rosto crispado. Achei que a qualquer momento o discurso fosse lhe fugir da boca. Foi uma espécie de pensamento condicionado, fiquei esperando a frase. Aquela frase. Não disse. Parece-me que entre nós instalou-se certa ideia subterrânea de que tudo está permeado pelas relações cliente/empresa, custo x benefício, lucro e prejuízo. A medida do mundo.
É provável - mais do que provável, quiçá indiscutível - que a escola esteja com a razão e não o pai. Regras são regras, servem para coibir o caos (sic). Pedir bom senso do mundo é exigir mais do que as pessoas podem dar. Eu, que cheguei com trinta minutos de antecedência, fiquei pensando se não carecia também de um tanto mais de “rigorismo”.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Wimbledon

Dia chuvoso de primavera. Faz frio também, portanto ainda a esperamos. O almoço foi leve: salada, peito de frango grelhado e arroz. As pessoas nas mesas ao redor mexiam em seus smartphones conferindo o facebook a cada 30 segundos. Curtir, postar fotos de comida, comentar. O facebook é uma espécie de consciência onipresente ou um chefe a quem devemos nos reportar Como tenho me policiado quanto ao uso dessa ferramenta orwelliana, iniciei a leitura de um artigo sobre a final do torneio de tênis de Wimbledon, disputado por Federer e Nadal em 2005 e escrita por um cara que já se matou. Não que o suicídio seja o que esperamos das pessoas. Aquele já é só para enfatizar a ideia de coisa remota como, por exemplo, uma final de tênis ocorrida há oito anos e comentada de modo religioso por alguém que morreu jovem e de forma trágica.
O mais estranho é que não sei o resultado da partida, quem ganhou o torneio. O autor ainda não chegou lá. Poderia, é claro, facilmente obter a informação no Google, entretanto desejo manter a expectativa como se estivesse acompanhando o jogo. Por outro lado, não faz a menor diferença na minha vida sabê-lo ou não. A vida também é feita de um monte de informações desimportantes e futilidades, igual ao facebook. Medir a relevância dos fatos parece tarefa bastante óbvia. Como confundir a essência com o superficial? Porém não é. Reduzida ao essencial à vida é uma jornada de sobrevivência. Ir além é o trabalho árduo. A visão reina sobre os demais sentidos e é dada a quimeras. O que me parece tão importante hoje, não o será amanhã, ou talvez o contrário, mostre-me seu valor, revele-se de uma forma distinta. De que maneira o resultado da final de Wimbledon de 2005 pode alterar minha vida ou acrescentar algo de relevante? O fato é que todas as futilidades me soam atraentes. Não jogo tênis - nunca joguei, sequer segurei uma raquete na mão. Entretanto, por alguns segundos, tento vislumbrar uma vida feita apenas de informações úteis, instruções e comandos técnicos de funcionamento. Ao invés disso penso em alguém que nesse momento toma café enquanto espera a chuva passar, apenas por esperar. Nada o aguarda ali adiante. Ele é isso; a espera, os carros desacelerando, o sinal vermelho. Eu também não sei exercitar o nada, não consigo almoçar sem ler ou escutar música, ao mesmo tempo em que não gosto de conversar com estranhos nessas estranhas praças de alimentação de shoppings. Talvez ler seja um modo de absorver o tempo. Procuro um lugar mais tranquilo para dar continuidade à partida. Espero que o Federer vença.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O ato abnegado da repetição

Através dos séculos e das guerras a grama cresce com uma fome religiosa: morrem os cachorros, trocam-se os donos, as pedras dão lugar á madeira, no entanto, resignada, ela segue crescendo. Alguém me escolheu para cortá-la, para cumprir o ritual do cultivo, o eterno retorno. Sinto que meus pés prendem-se a essa terra – a casa e o pátio que me viram nascer. Dei-me conta de que tudo inicia ali, a vida embrionária da humanidade, ao menos a minha.

A tarefa consiste em colocar a máquina no lugar em que a grama está mais baixa, ralinha. Então começo a jornada com preguiça inabalável. Aprendi que com ou sem pressa chegarei ao mesmo ponto, com ou sem pressa devo fazer canto por canto até vê-la uniforme como um tapete. O sol incide sobre á casa dos fundos projetando um recorte de sombra no pátio; ali a grama cresce mais verde e aguerrida. Cortei pela vida um tanto que daria pra pavimentar a estrada daqui até a praia. Creio que mais, muito mais. O pátio onde estão enterrados os mortos e os cachorros. Minha família não tem segredos: vivemos todos ungidos sob os auspícios da terra. O tempo que remova nossas duvidas. Tive um sonho: em pé minha mãe, eu e meu pai. Sentados minha irmã e meu sobrinho. Tijolo a tijolo construímos a casa da frente e a dos fundos, uma após a outra, o pátio entre ambas. Faz sol e usamos chapéus de palha. Depois de muito trabalho tomamos limonada e deitamos no chão de olhos fechados. Sonhamos o mundo e nele está o limoeiro, meus avós e a casa da praia. O mar abraça minhas pernas. Somos os únicos, mas não estamos sozinhos. Esse é o dia do perdão.

sábado, 1 de junho de 2013

uma pequena paz

O Vento nordeste soprava forte aumentando a sensação de frio que atravessava a roupa e doía nos ossos. Vagas enormes quebravam com preguiça como se nunca fossem chegar até a beira. Tive vontade de mergulhar mesmo assim, de ficar lá escondido me sentindo feliz. Era apenas um dia qualquer do ano sem nome ou data. Na praia nada disso importa, parece-me que há outra vida lá, uma possibilidade devagar e silenciosa de existir.
Então lá estava o mar habitado por anjos, velhas estrelas que se retiraram do mar e cachorros felizes de não terem dono. Uma pequena paz. A grama cresce nos pátios enquanto as casas lamentam a maresia numa espécie de harmonia musical tocada pelo vento. Entretanto, nada do que aqui está nos pertence. Não ficamos; nem os pés lavados ou um pedaço da alma. Mãos vazias. Talvez seja esse o segredo da felicidade

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O evangelho segundo Foster Wallace ou Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Terminei o MPBC (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e retomei a leitura do livro de ensaios do David Foster Wallace. Aos 34 anos ele publicou aquela que é considerada a sua obra-prima, Infinite Jest, romance de 1.100 páginas, que segundo alguns críticos é um monumento literário. Não sei ao certo o que isto significa. Escrever um livro de 1.100 páginas é um feito digno de mérito indiscutível. Em 1987 ele havia lançado seu primeiro romance. O fato é que David Foster Wallace se matou em 2008 aos 46 anos. Sua mulher disse que ele sofreu durante muitos anos com depressão, remédios e internações. Gostei do que eu pude ler até agora da sua obra, um livro de contos e o de ensaios. O estilo verborrágico, cheio de referências, e as inovações formais exalam criatividade e instigam o leitor, ainda que por vezes torne a leitura cansativa. Não encontro motivo para tanto burburinho ao mesmo tempo em que reconheço que aquilo que é despretensiosamente espontâneo e coloquial, na verdade é muito bem construído. Eu gosto. Porém, o que me fez levantar os olhos da página e repousá-lo num espaço vazio e indefinido é o porquê ele se matou. Porque alguém que escreveu um romance de 1.100 páginas, que era professor universitário, que podia trabalhar com uma bandana horrível amarrada na cabeça se suicida? Porque alguém que conseguiu aquilo que a maioria jamais sequer irá chegar perto resolve colocar um ponto final na sua história? O perigo real é se matar pelo oposto, pela consciência de que não iremos muito além da mediocridade.
Na mesa em diagonal um gerente de restaurante conversa com o seu supervisor. Deduzi que era hierarquicamente superior pela postura que assumiu: o jeito de mover as mãos, as expressões faciais de cobrança e a prepotência indefinida que um título ou encargo pode nos atribuir, além, é claro, do uniforme azul sóbrio, distinto dos demais empregados. Acima do gerente deve ter alguém que o trata dessa maneira, assim como o supervisor aplicará o mesmo aos seus subordinados. Na mesa ao lado um casal de funcionários de outro restaurante da praça de alimentação discute a relação. Pelas roupas sei que eles fazem parte do grupo que faz o trabalho mais insalubre e mal pago do lugar, devem passar o tempo todo socados na cozinha na frente de uma chapa absorvendo gordura. A pele fica oleosa, os cabelos, os olhos. O sonho que os visita à noite cheira a gordura. No lado oposto ao deles, na minha direita, um menino faz entrevista para trabalhar num desses restaurantes. A mulher que o entrevista está de uniforme e com um currículo nas mãos. É a típica entrevista em que ambos fingem que não sabem do que realmente estão falando. Ela sabe que o trabalho é ruim e que não dá para exigir muito daquele rapaz. Por sua vez ele sabe que o trabalho é horrível e que não lhe resta opção a não ser falar aquilo que ela espera ouvir, pois o emprego, provavelmente, é a única opção que ele têm no momento. É jovem e talvez esteja acostumado a pular de emprego ruim em emprego ruim. O shopping é um lugar extremamente sem privacidade e impessoal. Tudo se dá na praça de alimentação.
Visitei uma escola de educação infantil a tarde e lá havia um menino gordinho que chorava sem parar. Tiveram de chamar a sua avó. Quando ele a viu correu para os seus braços, chorou mais um pouco e depois já estava mexendo nos balanços que ficam no pátio. Muito gordo para a idade e pensei que talvez ele já tenha consciência disso e sofra na mão das outras crianças. Talvez não. Pensei que ele tinha razão em chorar, deve ser ruim ficar longe da mãe ou da avó naquela idade. Eu choraria, porém a vida não nos dá mais tempo para isso. Virei o rosto e olhei para os prédios na tentativa de encontrar o céu, parecia intromissão ficar vendo-o derrotado no colo da avó. O que viemos fazer aqui; pensei meio desconcertado com aquela cena boba, o que esperam que a gente faça? Olhei para os meus sapatos e coloquei as mãos para trás segurando-as nas costas. Porque o Foster Wallace se matou aos 46 anos? A idade que eu terei daqui a dez anos. A vida não é ruim. A questão toda não é acreditar ou não em Deus, mas sim o fato de que, crentes ou descrentes, não estamos preparados para o que virá a seguir; o inevitável, o acaso, os desastres, a morte, a tristeza. Nem para a alegria. Sinto que nunca estamos suficientemente preparados para coisa nenhuma na vida.
Enquanto tomava um pingado com uma fatia de torta cremosa de doce de leite – não posso esquecer de nunca mais pedir uma fatia inteira de torta de chocolate com doce de leite. É uma overdose de açúcar, dá metade para o fim dá até um pouco de enjoo – fui pensando nessas coisas. Não sei porquê ele se matou, gostaria que não o tivesse feito, que sentisse alguma esperança, que suportasse um pouco mais aquele dia. Eu diria; não sei, também não tenho as respostas e colocaria as mãos no bolso sem saber ao certo o que fazer. Não vá, David.


“Há quanto tempo você não faz Absolutamente Nada? Sei exatamente há quanto tempo não faço isso. Sei quanto tempo se passou desde que tive todas as minhas necessidades atendidas por algo externo a mim sem precisar fazer escolhas, sem ter de pedir ou mesmo reconhecer que precisava de algo. E nessa ocasião eu também flutuava, e o fluído era salgado, e morno no ponto ideal, e se eu tinha alguma consciência tenho certeza que não sentia pavor algum, e estava me divertindo bastante, e teria mandado cartões-postais para todo mundo dizendo que adoraria que estivesse ali.”
Wallace, David Foster. Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Invasor

Entrou em casa e logo notou os chinelos repousados no tapete. Repousados talvez não seja a palavra mais adequada para expressar a condição em que ele os encontrou. Foram deixados ali. A luz do abajur estava acessa e uma meia dúzia de almofadas espalhadas entre o sofá e o chão da sala. Entretanto o resto do cômodo estava organizado do modo habitual: os livros na estante, um molho de chave em cima da mesa e alguns jornais ou papéis com anotações desimportantes. Ás vezes um celular. Menos bagunça do que sinal de que a casa era habitada. A cozinha... Não teve tempo de averiguar a peça porque sua atenção foi capturada por um som abafado vindo da direção do quarto. O apartamento não era grande; três quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. O som que chegara até seus ouvidos, em principio como que encoberto, provinha do quarto maior, o de casal. Em pé, parado no centro da sala, o homem aguçou sua audição concentrando os olhos numa espécie de ponto invisível na parede. Franziu o cenho e distinguiu sons menores que compunham aquilo que lhe parecera um rumor. Havia uma batida intermitente de metal com madeira e o som de alguma coisa sendo arrastada, e somado a esse outro menos intenso, realmente mais abafado, um tipo de murmúrio ou gemido. Não teve dúvidas de que era produzido por uma entidade viva. Deduziu que fosse de humanos, logo havia alguém no quarto. O homem guardava posição utilizando-se, além da audição, de uma percepção aguda para compreender o que ocorria no apartamento. Correu os olhos e viu uma bolsa e um casaco pendurados no cabideiro próximo a entrada. Ambos femininos. Uma luz fraca provinha do quarto fazendo um recorte entre o chão e a parede. Era a luz de cabeceira do seu lado na cama, a mesma que havia usado na noite anterior para ler um livro sobre com influenciar pessoas ou coisa do gênero. Mais do que estranho achou irônico pensar no livro naquele momento em havia tanta coisa em jogo. Tanta coisa em jogo. Pôde ouvir sua própria voz repetindo a frase como se presa a cabeça. Pensou no filho - o único - prestes á completar dezoito anos. Ele entenderia o que estava em jogo? O que seria dele justo agora com toda a vida pela frente? E a vizinhança? Eram quase os mesmos desde a construção do prédio, estavam com ele fazia anos, quando ainda era caixa do banco. Pois eles e o bairro, o mercado, o pessoal do ponto de táxi, da banca de revista, eram a extensão da sua família. E o que diriam seus pais? O velho não perderia a oportunidade; Nunca me enganou. Eu te avisei! Diria isso e coisas piores. Os pensamentos se sucediam e se multiplicavam por vontade própria e findaram apenas quando recordou que havia um revólver na gaveta da mesa do escritório. Permanecia trancada a chave, uma cópia ficava no cofre e outra no molho que trazia consigo no bolso. Sentiu uma fraqueza nos joelhos, um cansaço que o fez tatear buscando o sofá. Deixou-se ficar ali desacomodado. Sentia como se o pensamento do revólver tivesse sido enxertado em sua cabeça, algo que não lhe pertencia. Um invasor. O barulho do quarto cessou e deu vez a um rumor de passos circulando como ratos desorientados. Pensou no que viria a seguir. Intuiu que as chances de mudar o rumo para o qual as coisas se encaminhavam eram escassas, quase nulas. Concentrou-se na própria respiração. Podia senti-los e sabia que eles faziam o mesmo. Entreolhavam-se incrédulos, atordoados pela dúvida, uma esperança estúpida de que não fosse ele que tivesse entrado no apartamento, nem o filho, que fosse realmente um ladrão, um desses aproveitadores que entram nos prédios sorrateiramente. Contudo, no fundo e sem saber explicar o por que, sabiam que era ele que estava na sala. Ainda sentado no sofá meditou que não saberia dizer que forças o haviam trazido até ali e o que esperavam que ele fizesse. Levantou-se. Foi até o escritório. Abriu o cofre e pegou o revólver, depois se virou para a janela que dava para o pátio da escola onde o filho havia estudado. Ficou ali parado e deixou que a vida se encarregasse de resolver o resto.

sexta-feira, 22 de março de 2013

O dedo apontava estrelas e ventilava quimeras com o pequeno gesto. Os olhos, pálpebras, abriam e fechavam com tamanha rapidez delicada que pareciam imóveis. Olhar o céu não era o que restava, ao contrário, bastava-nos, saciava os anseios mirar o destino que o ínfimo dedo indicava. O risco e o riso, anjos e astronautas, o traço aleatório de um deus. Transfigura-te, disse.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

À Deriva


Olhei para as mãos de Raquel; magras, dedos longilíneos, unhas feitas, porém sem esmaltes, e aliança no dedo indicador da mão esquerda. Não domino a convenção destes códigos, não faz diferença, é somente a transitoriedade dos símbolos. Um papel cunhado com um rosto e um número ao qual atribuímos o nome de dinheiro, enquanto outros chamam de felicidade. Raquel estava sozinha na mesa, impaciente, mexendo no celular lidando com preocupações reais ou inventadas. Fiquei observando de longe seus cabelos loiros ondulados, o rosto delgado e o olhar miúdo e pensativo. Era Raquel e seus medos, incerta do que estava fazendo, confusa a respeito do que sentia e como, ou porque, se via compelida a colocar toda a sua vida em jogo. Os filhos pequenos; Ana e Rafael, o emprego no colégio, a carreira acadêmica, o prestígio e a imagem que tinha de si mesma. Devia estar se perguntando por que se atrevera a perder aquilo que de mais caro possuía; a rotina arduamente perseguida e moldada ao longo dos anos.
Em minha defesa digo que não me propus a corromper sua vida, invadi-la insidiosamente com um linfoma cancerígeno ou com a violência dos tornados. Não havia me programado para conhecê-la, ao contrário, continuo a desconhecendo. O que sei a seu respeito é involuntário, fragmentos que se foram descolando de sua boca extenuada enquanto nos deixávamos abandonados na cama como que distantes de nós mesmos. Raquel se distendia pelo colchão, jogava as pernas por sobre meu corpo e falava, lúcida e impassível, de sua vida como se comentasse a existência de outra pessoa. Creio que tenha sido ela a me escolher, que estava decidida antes que eu a tivesse olhado pela primeira vez, antes que em minha mente surgissem as primeiras e tímidas evocações da sua presença. Não que eu esteja me isentando de tudo que lhe disse, das promessas sussurradas ao ouvido de que nada mudaria no concerto monolítico de nossas vidas, e também das coisas que não foram ditas. Acordamos um contrato de cláusulas ignoradas. Ainda assim lá estava Raquel saída do meio da tarde, blusa branca e calças jeans, iluminada por um facho de luz que cruzava o ambiente e repousava em seu rosto. Poucas vezes voltaria a vê-la tão linda, dotada de uma inocência que não existia entre nós, assombrada por temores que eu não podia garantir serem infundados. Eu também os sentia. Não era vergonha de sermos descoberto, talvez algo mais próximo da ansiedade, ou do terror que invade o preso na sala de tortura a espera do destino que se lhe apresenta inexorável. Certa resignação. O medo de que Raquel se tornasse para mim uma necessidade e em algum momento um de nós dois tivesse o rompante, tanto equivocado quanto ingênuo, de estender ao outro a armadilha dos amantes: o amor, a fuga romântica da realidade, o recomeçar a vida aqui em outro lugar, outro tempo. Não há como remediar as ilusões. Porém, nessa época vivíamos o desconhecido, a beleza selvagem do infortúnio. Raquel sorriu seu meio sorriso e penetrou seus olhos nos meus. Tive vontade de colocar minha mão sobre a sua, mas contive o ímpeto. Conversamos futilidades amenas naquela meia hora, contando em segredo os minutos que nos separavam do acanhado quarto de hotel. Só depois de muito tempo é que fui entender que já estávamos distantes, à deriva no mar.

Desalinhando


O blog desandou. Não era minha intenção deixá-lo tanto tempo desativado, mas o fato é que ficou. Aquelas coisas que vão acontecendo, vamos deixando, e que depois de um tempo, sem nem nos darmos conta, entram no gerúndio. No final do ano passado não havia espaço para fazer mais nada. Tirei férias de sentir vontade de fazer qualquer coisa a não ser entrar em férias. Não fiz retrospecto de fim do ano, balanço final ou coisa do tipo, apenas segui perseguindo os dias de praia e prazer. Eles chegaram e já se foram, mas não com pressa, ao contrário que sempre supomos que acontecerá, escorreram preguiçosos, repletos das coisas que gosto de fazer: albatross, prancha nova, altas ondas, água limpa e sol. Inclusive os dias de chuva foram generosos. Não foi todo o tempo assim, porém prefiro manter os que valeram a pena na memória. Não vou me estender muito nessa história. Fevereiro chegou trazendo trabalho, calor em Porto Alegre e uma parada para o carnaval. Acabou a temporada. É isso. De volta á vida como ela costumava a ser. Então me bateu aquela vontade realinhar o blog no desalinho novamente, ou talvez tenha sido mais um desejo de renovar certos votos, como o de escrever, por exemplo. Eu não sei qual foi a minha intenção ao criá-lo, quiçá uma forma de materializar o sonho de escrever e ser lido, mesmo que eu não o seja por ninguém, exceto o Daniel Rock (é ou não é, Daniel?!). Mesmo assim ele existe, é um projeto, um desejo, inspiração. Um sei-lá-oque. Portanto, estamos aqui 2013. Escrevi para o Daniel dizendo que tinha bons pressentimentos em relação a esse ano. Não sei, me parece até um pouco idiota esse tipo de previsão mágica – logo a voz severa que opera dentro da minha cabeça diz que se eu não me mexer muito mais do que costumo a fazer nada (nada mesmo, nadinha) irá acontecer. Entretanto acho que é esperança o que tentei expresar, esse sentimento inominável, essa crença que de certa forma me leva a sair do lugar e pensar que podemos ser melhores do que isso, do que temos sido preguiçosamente ao longo dos dias, que a vida será melhor. Yes, we can! Não tirei férias da literatura, muita coisa boa foi lida, mas não vou comentar um por um aqui, me parece um pouco de exibicionismo presunçoso fazer lista de leitura das férias. Enfim, no momento estou lendo o inspirador Do que eu falo quando eu falo de corrida, do Haruki Murakami. Na minha singela e modesta opinião uma pequena jóia, tendo em vista que logo em breve correrei minha primeira prova;extensos e longínquos 5km. Maratona de Nova York, aí vou eu!