sexta-feira, 16 de julho de 2010

Teia de Aranha

Os minutos aqui dentro se arrastam enquanto lá fora o mundo explode. Alguns estão bebendo desde a manhã, outros iniciaram agora à noite e creio que poucos, assim como eu, não o fazem. Não posso afirmar que o álcool seja o único responsável pela euforia das pessoas nem por todo esse bombardeio, é apenas efeito de mais um final de ano. Apesar de já tê-lo vivido uma infinidade de vezes ainda estranho essa histeria que impregna o ar. Estranho também essa forma de contar o tempo - períodos de 365 dias - não sei qual o significado, como chegaram até ele. Não sinto diferença de um ano para o outro, me parece que o peso das mudanças só chega quando já estamos de mãos vazias incapazes de agir. O mais importante não é contar os dias, mas retê-los e isso eu não fui capaz de fazer. Ninguém foi. Se não fosse pelas olheiras profundas, por alguns cabelos brancos e a calva avançada, poderia dizer que parei no tempo. O ano de 2009 se esvai pelas ruas, que venha 2010.

Observo uma aranha organizar seu ritual de morte para um inseto que por azar, ou por descuido, caiu em sua teia. Ela não o mata logo de inicio, antes dá inúmeras voltas em torno dele, indo de uma extremidade a outra da teia. Depois se aproxima e recua. Repete o movimento mais algumas vezes até que por fim encosta nele desferindo o golpe fatal. Tenho vontade de esmagá-los.

Intensificaram o bombardeio, estamos a menos de 20 minutos do ano novo. Ouço também a voz de minha mulher. Ela, mais um casal de amigos e meus pais querem fazer a contagem regressiva na beira da praia. Desejam ver com seus próprios olhos o milagre do ano novo surgir do mar.

Ao contrário do que pensei o inseto continua vivo se contorcendo na teia. A aranha está imóvel numa das pontas, observando-o com parcimônia. Quando for da sua vontade ela acabará com o jogo. Ela detém um poder demiurgo em suas patas esquálidas e minúsculas. Ela, um inseto insignificante. Não posso matá-los. Vejo o rosto de Vânia contorcido pela impaciência. Chegam até meus ouvidos reclamações; falta de consideração, é tudo que ela consegue dizer e o repete uma infinidade de vezes. Heitor surge na porta. É fim de ano, gente! Não sei por que ele utiliza essa expressão, “gente”, como se ao lançar mão dela estivesse a dissipar a diferença entre nós todos. Olho ao redor e largo a caneta em cima da mesa.

Não sei quanto faltava para meia-noite quando saímos de casa. No céu estouravam fogos coloridos, estrelas e rabos de foguetes. Gritos cortavam o ar sufocado. Tudo se movia assustadoramente. Pessoas que mais pareciam fantasmas num campo batalha, aturdidos pela morte brutal e repentina, surgiam de todos os lados, brotavam do útero da penumbra. Chegamos à beira da praia a poucos minutos da meia-noite. A comoção se espalhava com o vento, senti um mal estar próximo a náusea. Alguns corriam, outros se abraçavam, tiravam fotos, carregavam champagnes, fogos de artifício. Os malditos fogos explodindo no céu. O prenúncio de uma tragédia. Eu via a morte nos espreitando como se ela fosse a aranha na ponta da teia. Alguém falou comigo, mas vi apenas a sombra, metade dela, sussurrando-me palavras. O que ela disse foi encoberto pelo barulho de uma explosão gigantesca, seguida de um clarão que deixou o céu manchado. Corri desabalado em direção ao mar, entrei até onde deu pé, depois caí. Tentei nadar. A água estava gelada, estranhamente pegajosa.

A partir desse momento os fatos não mais obedecem a uma ordem, recordo-me de imagens como se fossem fotogramas dispersos de uma película. Vejo algumas pessoas me retirando inconsciente do mar e depositando meu corpo na areia. Vomito muita água. Vânia em desespero me abraça. Aquele não é o seu rosto, mas sei que é ela. Tento ficar em pé. Rolo pela areia úmida, os mortos me agarram, querem me enterrar com eles. Seus ossos cortam minha carne, rasgam minhas roupas. Preciso me desvencilhar. Vânia está sentada no chão abraçada em seus joelhos. Sinto-me aprisionado como o inseto. Abre-se uma brecha, um facho de luz me atinge. Nu, corro pela rua de pedras escuras.

O quarto é o da casa da praia. Escuto vozes ao fundo, talvez venham da rua. Não lembro quase nada da noite anterior, exceto a imagem da aranha e de sua presa. Levanto e me dirijo à cozinha. Procuro pela teia que estava estendida entre a parede e o armário, próximo ao piso. Nem sinal deles. Sinto os olhares pesando sob minhas costas. Estão todos lá fora me vigiando, empapados de protetor solar, fingindo que tomam banho de sol. Volto para o quarto

Nesse mesmo dia Vânia trouxe-me de volta á Porto Alegre. Durante a viagem falou sobre coisas absurdas que eu teria feito na noite do Ano Novo, que havia me comportado como um louco. Perguntou-me diversas vezes se eu havia ingerido bebida alcoólica, ao final disse que iria pedir o divórcio. Respondi uma merda qualquer e tratei de dormir. Já sei o que virá a seguir, conheço a receita: aumentar a dosagem dos remédios, outro antidepressivo, um regulador de humor, quem sabe um novo psiquiatra. Não faz diferença. A aranha se move em silêncio.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

tentando escrever

Escrever é um exercício de natureza tão radical e severa que sinto-me tragado por esse tour de force, com a necessidade de ir mais ao fundo, a perder de vista o ponto de retorno, cambaleando pelo território inóspito. Escrever é flertar com tudo que há de terrível e sublime no dorso do tempo. Vejo uma jangada á deriva no mar, a vela sobraçando ao vento, milhares de braços a aguardam. Vejo-me de terno e gravata carregando uma pasta de couro vazia, perambulando apressado pelas ruas do centro, como se de mim dependesse muitas decisões. Talvez eu seja o ministro de algum país africano esquecido no Brasil, disfarçado de velho Marcelo. Vejo o futuro e um pouco de passado, vejo também o Lou Reed cantando “Coney Island Baby”, e nem preciso abrir ou fechar os olhos, apenas sigo tentando escrever.