segunda-feira, 22 de abril de 2013

O evangelho segundo Foster Wallace ou Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Terminei o MPBC (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e retomei a leitura do livro de ensaios do David Foster Wallace. Aos 34 anos ele publicou aquela que é considerada a sua obra-prima, Infinite Jest, romance de 1.100 páginas, que segundo alguns críticos é um monumento literário. Não sei ao certo o que isto significa. Escrever um livro de 1.100 páginas é um feito digno de mérito indiscutível. Em 1987 ele havia lançado seu primeiro romance. O fato é que David Foster Wallace se matou em 2008 aos 46 anos. Sua mulher disse que ele sofreu durante muitos anos com depressão, remédios e internações. Gostei do que eu pude ler até agora da sua obra, um livro de contos e o de ensaios. O estilo verborrágico, cheio de referências, e as inovações formais exalam criatividade e instigam o leitor, ainda que por vezes torne a leitura cansativa. Não encontro motivo para tanto burburinho ao mesmo tempo em que reconheço que aquilo que é despretensiosamente espontâneo e coloquial, na verdade é muito bem construído. Eu gosto. Porém, o que me fez levantar os olhos da página e repousá-lo num espaço vazio e indefinido é o porquê ele se matou. Porque alguém que escreveu um romance de 1.100 páginas, que era professor universitário, que podia trabalhar com uma bandana horrível amarrada na cabeça se suicida? Porque alguém que conseguiu aquilo que a maioria jamais sequer irá chegar perto resolve colocar um ponto final na sua história? O perigo real é se matar pelo oposto, pela consciência de que não iremos muito além da mediocridade.
Na mesa em diagonal um gerente de restaurante conversa com o seu supervisor. Deduzi que era hierarquicamente superior pela postura que assumiu: o jeito de mover as mãos, as expressões faciais de cobrança e a prepotência indefinida que um título ou encargo pode nos atribuir, além, é claro, do uniforme azul sóbrio, distinto dos demais empregados. Acima do gerente deve ter alguém que o trata dessa maneira, assim como o supervisor aplicará o mesmo aos seus subordinados. Na mesa ao lado um casal de funcionários de outro restaurante da praça de alimentação discute a relação. Pelas roupas sei que eles fazem parte do grupo que faz o trabalho mais insalubre e mal pago do lugar, devem passar o tempo todo socados na cozinha na frente de uma chapa absorvendo gordura. A pele fica oleosa, os cabelos, os olhos. O sonho que os visita à noite cheira a gordura. No lado oposto ao deles, na minha direita, um menino faz entrevista para trabalhar num desses restaurantes. A mulher que o entrevista está de uniforme e com um currículo nas mãos. É a típica entrevista em que ambos fingem que não sabem do que realmente estão falando. Ela sabe que o trabalho é ruim e que não dá para exigir muito daquele rapaz. Por sua vez ele sabe que o trabalho é horrível e que não lhe resta opção a não ser falar aquilo que ela espera ouvir, pois o emprego, provavelmente, é a única opção que ele têm no momento. É jovem e talvez esteja acostumado a pular de emprego ruim em emprego ruim. O shopping é um lugar extremamente sem privacidade e impessoal. Tudo se dá na praça de alimentação.
Visitei uma escola de educação infantil a tarde e lá havia um menino gordinho que chorava sem parar. Tiveram de chamar a sua avó. Quando ele a viu correu para os seus braços, chorou mais um pouco e depois já estava mexendo nos balanços que ficam no pátio. Muito gordo para a idade e pensei que talvez ele já tenha consciência disso e sofra na mão das outras crianças. Talvez não. Pensei que ele tinha razão em chorar, deve ser ruim ficar longe da mãe ou da avó naquela idade. Eu choraria, porém a vida não nos dá mais tempo para isso. Virei o rosto e olhei para os prédios na tentativa de encontrar o céu, parecia intromissão ficar vendo-o derrotado no colo da avó. O que viemos fazer aqui; pensei meio desconcertado com aquela cena boba, o que esperam que a gente faça? Olhei para os meus sapatos e coloquei as mãos para trás segurando-as nas costas. Porque o Foster Wallace se matou aos 46 anos? A idade que eu terei daqui a dez anos. A vida não é ruim. A questão toda não é acreditar ou não em Deus, mas sim o fato de que, crentes ou descrentes, não estamos preparados para o que virá a seguir; o inevitável, o acaso, os desastres, a morte, a tristeza. Nem para a alegria. Sinto que nunca estamos suficientemente preparados para coisa nenhuma na vida.
Enquanto tomava um pingado com uma fatia de torta cremosa de doce de leite – não posso esquecer de nunca mais pedir uma fatia inteira de torta de chocolate com doce de leite. É uma overdose de açúcar, dá metade para o fim dá até um pouco de enjoo – fui pensando nessas coisas. Não sei porquê ele se matou, gostaria que não o tivesse feito, que sentisse alguma esperança, que suportasse um pouco mais aquele dia. Eu diria; não sei, também não tenho as respostas e colocaria as mãos no bolso sem saber ao certo o que fazer. Não vá, David.


“Há quanto tempo você não faz Absolutamente Nada? Sei exatamente há quanto tempo não faço isso. Sei quanto tempo se passou desde que tive todas as minhas necessidades atendidas por algo externo a mim sem precisar fazer escolhas, sem ter de pedir ou mesmo reconhecer que precisava de algo. E nessa ocasião eu também flutuava, e o fluído era salgado, e morno no ponto ideal, e se eu tinha alguma consciência tenho certeza que não sentia pavor algum, e estava me divertindo bastante, e teria mandado cartões-postais para todo mundo dizendo que adoraria que estivesse ali.”
Wallace, David Foster. Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Invasor

Entrou em casa e logo notou os chinelos repousados no tapete. Repousados talvez não seja a palavra mais adequada para expressar a condição em que ele os encontrou. Foram deixados ali. A luz do abajur estava acessa e uma meia dúzia de almofadas espalhadas entre o sofá e o chão da sala. Entretanto o resto do cômodo estava organizado do modo habitual: os livros na estante, um molho de chave em cima da mesa e alguns jornais ou papéis com anotações desimportantes. Ás vezes um celular. Menos bagunça do que sinal de que a casa era habitada. A cozinha... Não teve tempo de averiguar a peça porque sua atenção foi capturada por um som abafado vindo da direção do quarto. O apartamento não era grande; três quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. O som que chegara até seus ouvidos, em principio como que encoberto, provinha do quarto maior, o de casal. Em pé, parado no centro da sala, o homem aguçou sua audição concentrando os olhos numa espécie de ponto invisível na parede. Franziu o cenho e distinguiu sons menores que compunham aquilo que lhe parecera um rumor. Havia uma batida intermitente de metal com madeira e o som de alguma coisa sendo arrastada, e somado a esse outro menos intenso, realmente mais abafado, um tipo de murmúrio ou gemido. Não teve dúvidas de que era produzido por uma entidade viva. Deduziu que fosse de humanos, logo havia alguém no quarto. O homem guardava posição utilizando-se, além da audição, de uma percepção aguda para compreender o que ocorria no apartamento. Correu os olhos e viu uma bolsa e um casaco pendurados no cabideiro próximo a entrada. Ambos femininos. Uma luz fraca provinha do quarto fazendo um recorte entre o chão e a parede. Era a luz de cabeceira do seu lado na cama, a mesma que havia usado na noite anterior para ler um livro sobre com influenciar pessoas ou coisa do gênero. Mais do que estranho achou irônico pensar no livro naquele momento em havia tanta coisa em jogo. Tanta coisa em jogo. Pôde ouvir sua própria voz repetindo a frase como se presa a cabeça. Pensou no filho - o único - prestes á completar dezoito anos. Ele entenderia o que estava em jogo? O que seria dele justo agora com toda a vida pela frente? E a vizinhança? Eram quase os mesmos desde a construção do prédio, estavam com ele fazia anos, quando ainda era caixa do banco. Pois eles e o bairro, o mercado, o pessoal do ponto de táxi, da banca de revista, eram a extensão da sua família. E o que diriam seus pais? O velho não perderia a oportunidade; Nunca me enganou. Eu te avisei! Diria isso e coisas piores. Os pensamentos se sucediam e se multiplicavam por vontade própria e findaram apenas quando recordou que havia um revólver na gaveta da mesa do escritório. Permanecia trancada a chave, uma cópia ficava no cofre e outra no molho que trazia consigo no bolso. Sentiu uma fraqueza nos joelhos, um cansaço que o fez tatear buscando o sofá. Deixou-se ficar ali desacomodado. Sentia como se o pensamento do revólver tivesse sido enxertado em sua cabeça, algo que não lhe pertencia. Um invasor. O barulho do quarto cessou e deu vez a um rumor de passos circulando como ratos desorientados. Pensou no que viria a seguir. Intuiu que as chances de mudar o rumo para o qual as coisas se encaminhavam eram escassas, quase nulas. Concentrou-se na própria respiração. Podia senti-los e sabia que eles faziam o mesmo. Entreolhavam-se incrédulos, atordoados pela dúvida, uma esperança estúpida de que não fosse ele que tivesse entrado no apartamento, nem o filho, que fosse realmente um ladrão, um desses aproveitadores que entram nos prédios sorrateiramente. Contudo, no fundo e sem saber explicar o por que, sabiam que era ele que estava na sala. Ainda sentado no sofá meditou que não saberia dizer que forças o haviam trazido até ali e o que esperavam que ele fizesse. Levantou-se. Foi até o escritório. Abriu o cofre e pegou o revólver, depois se virou para a janela que dava para o pátio da escola onde o filho havia estudado. Ficou ali parado e deixou que a vida se encarregasse de resolver o resto.