segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

OUR MAN IN PARIS

para Daniel distantes trovões


Através de uma decisão que nem lembro há quanto tempo fiz, disse que faria as coisas a minha maneira. Não a verbalizei a ninguém, apenas fiquei a matutá-la mentalmente, anuindo diversas vezes com a cabeça.
Esse seria, ou ainda é, um bom inicio de um conto. O estranho é que sentei aqui nessa cadeira amolada pra te escrever um email e me saiu isso como se fosse estória. Talvez lá no meu pensamento não haja mais como distinguir verdade e ficção, literatura ou vida. Vá lá; nem nós sabemos quem é essa tal de literatura. Mas decidi que iria te escrever, pedi uma água mineral da geladeira e coloquei um disco de jazz para rodar. Logo, logo entra o Dexter Gordon, Our Man In Paris. Porém, como não tinha ninguém pra me trazer água – com gás, por favor -, eu mesmo fui ali buscá-la. Meu caro, como eu estava dizendo, essa coisa de escrever é estranho, não dá vontade de fazer mais nada, só escrever. Não tenho vontade nenhuma de trabalhar, nem de deitar pra acordar amanhã cedo e vestir aquela roupa atrapalhada, e me fingir de coisa alguma. Nem sei se é fingimento, não sei o que é. Sei que o dia se contorce inteiro, agoniza, depois voa que eu mal caibo nele. Voa. É noite. É o banho. Meia noite. Acabou pra começar tudo de novo. Luto entre a vigília e o sono. A verdade é que eu não queria dormir. Nem agora, nem nunca.
As vezes eu também sinto uma vontade de só ficar lendo, sem parar, até gastar todas as folhas, deixar tudo em branco, zeradinho. Que elas peguem fogo. Gastar todo meu dinheiro – meu dinheiro inventado com caneta azul – numa montanha de livros. Inverossímil, veja você, é a vida, verdade mesmo é ficção. Eu gostaria de acabar esta carta com uma citação, mas deixa pra lá, já passou da hora, os livros estão quietos dormindo. Outra hora te escrevo.
Aquele abraço.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Casa de Ideias

Depois de uma breve parada - mudanças, novo emprego, LPIII, entre outras coisas - consegui dar uma atualizada no blog. Meus parabéns ao Pedro Gonzaga, um cara super gente boa, que está abrindo junto com o professor Cláudio Moreno a Casa de Ideias, um novo espaço cultural em Porto Alegre. Ainda não tenho o link do site deles, mas em breve divulgarei. Salve! e um abraço ao Daniel Rock Distante Trovão! continue resistindo, meu velho.

O mecanismo

Cristina olhou o relógio, ainda faltava muito para o término da aula. Pensou nisso com extensa sofreguidão como se sua vida fosse acabar antes que pudesse articular o pensamento seguinte. Respirava com dificuldade, fruto do cansaço e de um resfriado. Na verdade vivia a algum tempo em dificuldade. A timidez a ameaçava sempre feroz, e muitas vezes lhe condicionava as reações. Não temia as pessoas, mas sim o mecanismo obscuro que sorrateiramente trabalhava em seu corpo fustigado pela magreza. E ele não o fazia por uma questão de autopreservação, instinto bruto de sobrevivência, longe disso, fazia-o para castigá-la, para sentir o frêmito de vergonha que a ruborizava e as contrações estomacais que invariavelmente acabavam em diarréia. Porque ele - o mecanismo - julgava-se tão mais importante do que ela, o verdadeiro dono daquilo que ela, em matéria e espírito, sentia ao comer, dormir ou trepar, ainda que apenas se masturbasse ou suasse frio em privação. Por sua vez, paradoxalmente, ela o sentia como parte íntima de si mesma e como unidade distinta e autônoma, dotado de força maior que a sua. O mecanismo fora acalentado anos a fio, provavelmente como uma forma de punir-se, ou sistema de defesa, ou nem uma coisa nem outra. Era sua obscuridade misteriosa e sem propósito que a assolava, sua intimidade tão familiar e acolhedora que a aprisionava naquele vórtice cruel de vergonha e desamparo.

Quando o jovem colega, sentado a classe vizinha, na verdade uma mesa fazia ás vezes de trincheira entre ambos, tocou-lhe o braço e estendeu a mão segurando uma barra de chocolate pela metade, sentiu os maxilares se deslocando, arrastando os dentes uns contra os outros. Os músculos da face se contraíram deformando aquilo que deveria ser um sorriso. Entorpecida pelo sono que lhe caía sobre os ombros, acumulado de meses inteiros dormindo tarde da noite e acordando na primeira hora da manhã, Cristina mal conseguia perceber o que ocorria ao redor; seus colegas apagavam os olhos e escorriam das cadeiras lentamente até o chão, aninhando-se como roupa gasta e suja. O chocolate ali parado naquela mão enorme e um tanto intransigente, pois que não se movia e mantinha-se fixa estendendo a barra marrom enrolada em papel alumínio, exigindo uma resposta, mostrando-lhe que não podia ser ignorada, ainda que pudesse se travestir de outras coisas, de ofensas ou monstruosidades. A mão como se tomada de chocolate, dedo por dedo, longas barras de unhas molengas. Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Não foi que tivesse sentido fome ou desejado a morte daquele rapaz, ou a sua própria, foi o esgotamento, um instinto quase mecânico. A boca encheu-se de sangue, dedos e chocolate. Mastigou-os tomada de vontade e desejo, como se trepasse com eles. O jovem foi transpassado por uma dor muda. Contorcia-se ao chão com a boca escancarada, de lá, porém, nenhum som escapava. Com a destra segurava a mão mutilada enquanto o sangue lhe escorria vertiginoso pelo braço. A professora não percebera o que acabara de ocorrer ou, pior, dava a impressão de não estranhar o incidente. Talvez não o tivesse registrado no cérebro. Cristina levou a mão à boca a fim de que nenhum naco lhe escapasse. Mastigava-os com incontido prazer. O rosto, antes pálido, foi se banhando de uma luz avermelhada. Ajoelhou-se ao lado do colega afônico e pôs-se a comê-lo, primeiro o restante da mão, depois o braço e o peito. A essa altura a professora havia parado a aula e repreendia os alunos que não cessavam de escorrem das cadeiras.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Agosto

Escrevendo, demorando-se por aí, mas consegui.
Um post modesto escrito logo abaixo.

O próximo

Após quase dez anos ele voltava para casa e desde o momento em que cruzara o portão branco enferrujado, sentiu como se nunca houvesse partido. Percebera de imediato que a casa, a vizinhança, o modo peculiar de ser das pessoas, jamais o abandonara. Havia respirado daquele ar, estava impregnado dele, assim como tudo que fizera fora dali. Dez anos e nenhuma visita, dez anos e o desejo de esquecê-los. Voltava para casa depois de dez anos como se tivesse interrompido uma vida para começar outra, e agora retomava aquela que havia deixado para trás, que julgara seccionada. Apenas ligou e disse que precisava voltar. A mãe não lhe fez perguntas, o silêncio foi a resposta. Um misto de alivio e pesar lhe oprimiram o peito. Não era um milagre que o número do telefone ainda fosse o mesmo, pois tudo lá permanecia igual. Ele voltava com o mesmo que partira, e nem poderia ser de outro jeito, pois há dez anos, quando partiu sem deixar vestígios, fugindo talvez de uma tragédia, de uma ameaça desumana e insondáve, não carregou nada consigo. E seu retorno se dava da mesma forma; as mãos vazias, uma jaqueta jeans surrada por cima dos ombros e uns sapatos marrons que pareciam emprestados. Era de se supor que os anos transcorridos houvessem sido pequenos e maus. Anos maus não eram coisa nova em uma vida tão cheia de misérias, mas anos pequenos não podia ser, porque todos os anos são iguais. Porém, aquele tempo que havia passado, que percorrera como se através de um túnel, tateando na escuridão, e se inscrevera em seu rosto, esses, haviam sido anos pequenos

Durante a viagem, no ônibus que o trouxera de volta, não conseguiu pregar o olho, hipnotizado pela paisagem monótona que emoldurava a estrada. Os campos verdes sem fim, ralos e improdutivos, as árvores cortadas, a magreza dos bois. Entre o cansaço e a ansiedade, sentia-se, enfim, liberto de um sentimento que não sabia ao certo como definir, pois não se tratava de medo ou orgulho, nem do fracasso. Aceitava tudo que ficara para trás e o que estava adiante e não possuía um nome. Desceu na rodoviária e pegou um ônibus de linha. A cidade havia mudado; mais prédio, mais carros, mais barulho. Tudo estava como que amontoado, oprimido pela falta de espaço. Contudo, na medida em que se afastava do centro, os bairros perdiam aos poucos a magnitude do concreto, ao invés de prédios, muitas casas e terrenos baldios. Reconhecia o lugar do qual havia desaparecido há dez anos e lhe parecia o mesmo

Desceu na parada que fazia esquina com a avenida que dava acesso a rua onde estava a casa. Caminhou três quadras para dentro e dobrou á esquerda. Da parada de ônibus até ali não avistara quase ninguém, um que outro vizinho e alguns cachorros. Imperava o silêncio imóvel do abandono. As casas eram rigorosamente as mesmas, feitas de tábuas largas de madeira, portões baixos com a pintura descascada e enferrujados. Ao entrar na rua logo avistou crianças jogando bola na calçada, usando tijolos como goleira. O som da algazarra, o vozerio estridente e caloroso, chegou-lhe até os ouvidos com o poder de despertar um órgão adormecido. Alegrou-se momentaneamente. E lá estava à casa bege de portão branco, parecia tão pequena como se aquela fosse a imagem de uma lembrança e não a coisa real. Cruzou o portão e caminhou pela lateral da casa em direção a porta dos fundos que dava para a cozinha. Não havia espanto em seu coração, nem impaciência. Sentia-o pulsar, nada mais. A porta estava aberta e á mesa, seu pai, a mãe, a irmã mais velha e um rapaz que ele desconhecia, ainda que fosse muito semelhante a ele quando mais jovem. Havia também um prato e uma cadeira vazia. Sentou-se, comeram, e dividiram o pão.

terça-feira, 5 de julho de 2011

junho

O silêncio nunca é pleno, há sempre algum ruído lutando contra o vazio. Ele é presença e ausência. O homem parado ao lado do poste, debaixo da chuva, nada trazia além das roupas do corpo. Um pouco de sangue lhe manchava as calças. O passado é um enferrujado arrastar de sapatos ressoando em nossos ouvidos.
Pela janela eu o observava. Sabia que ele não parava ali por acaso, que era esse o seu intento; que eu o mirasse lá do alto, da segurança tranqüila e inócua do apartamento, e me sentisse estranhamente açoitado pela sua imagem, que fosse da indiferença ao ódio, depois ao temor. Ele ficava ali parado até a polícia chegar e decidir-se ou por levá-lo, ou por surrá-lo diante da janela para que eu os visse cumprindo com o seu dever, e para que meus olhos vertessem sangue enquanto eu dormia. E por mais que eu tentasse, por mais que sentisse que aquele homem não me pertencia tanto quanto os carros estacionados na rua, algo nos conectava de uma forma silenciosa e atroz. Podia sentir sua presença, as gotas caindo em seu rosto. Calcei os sapatos, peguei o casaco e saí. O frio úmido da maçaneta correu-me o braço e entranhou-se debaixo da pele deixando-me o coração numa espécie de câimbra. Do hall de entrada do prédio eu já podia vê-lo imóvel debaixo da luz esmaecida do poste. Abri o portão e deixei-o bater. Queria ouvir o som de ferro contra ferro. Distava menos de dez passos do homem. Mais do que vê-lo, podia sentir em mim seu olhar como um hálito quente a me atrair. Usava jaqueta de nylon azul marinho e calças jeans, os sapatos eram escuros e surrados. O rosto estava mal barbeado, contudo não parecia ameaçador, tampouco havia ódio em seus olhos que percebi estrábicos.
- o que é que tu quer?
O homem nada respondeu.
- É vingança?
- Não.
- Então é o que?
- Eu vim lavar as tuas mãos.Olhe bem; não estão sujas?
E logo minhas mãos tornaram-se vermelhas e delas escorriam lágrimas espessas. E eu preciso morrer um pouco, disse o homem enquanto tirava um punhal da cintura e o depositava na minha mão. Segurou-me o pulso com firmeza e fixou o olhar esquivo em minha alma. Senti o líquido quente em abundância afogando-me o braço. O homem tombou na sarjeta debatendo-se como se fosse um peixe retirado da água. Pedaços do seu corpo diluíam-se no pequeno córrego que se formara com a chuva. A rua inteira foi tornado-se vermelha como se fosse uma veia aberta, desde as árvores enraizadas no concreto até os cachorros nos pátios. Enfim o corpo desapareceu e a chuva parou. Tive a impressão de não ouvir barulho algum. O silêncio era tanto que parecia ensurdecedor, nada vibrava ou emitia som. Voltei aflito para o apartamento. Fui ao quarto de meu filho e encostei a cabeça em seu peito; ouvi seu coração de criança sonhando. Sentei-me no chão ao lado da cama e contemplei minhas calças manchadas de sangue.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Mrs. Parker


Mrs. Parker tem uma página na internet, escreve poesias e críticas literárias. A foto do seu perfil lembra a de uma pin-up; cabelos curtos e negros, ar intelectual e idéias sedutoras. O lay-out do site é sóbrio, elaborado em detalhes, nada destoa, nem formas, nem cores. Só publica quando tem vontade e não exclui os comentários pejorativos, eles a divertem. Mrs. Parker não tem coluna de seguidores, achou desnecessária aquela ferramenta mal enjambrada de aferição de popularidade.
- E quem se importa com isso? Sugere com ar blasé. E quem se importa com isso?

Mrs. Parker zomba da minha insegurança. Ao vê-la tão cheia de si pensei em fazer o mesmo no meu blog, arrancar a coluna de seguidores. Afinal, quem precisa de seguidores se nem eles me lêem? O que eles significam para o meu ego faminto de aclamação pública? Ter seguidores soa um pouco como um messianismo fascista. Mussolini e Antônio Conselheiro é que possuíam seguidores. Eu quero ser lido, basta. Porém, na mesma medida em que me senti tentado a excluí-los, tive medo. Um medo obscuro e infundado, desses irracionais. Como assim excluir os seguidores? Meus seguidores! Com tanta gente no mundo para ser deletada, logo eles?

Mrs. Parker, segundo boatos, alcançou um tipo de status intelectual que já não precisa de nada além de seus próprios comentários, dos teóricos russos, de Borges, Pessoa e Shakespeare. Diz que a literatura lhe basta. Nada mais. Nem mesmo sexo ou coquetéis em noites de autógrafo. Olho para os meus vinte seguidores com um misto de perplexidade e paixão. Vinte. E dentre eles estou eu a seguir-me como se fosse um duplo, leitor deste tal Marcelo, que também é um outro. Não posso excluí-lo.
- Eu comeria carne humana, ela me disse. Maldita! Eu a seguiria se pudesse.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Bassini Letters

...andei rasbiscando umas linhas.Ah! o tempo.

Bassini Letters

Acordei com a impressão de que já havia despertado naquela manhã, como se estivesse acordando pela segunda vez. Uma caixa dentro da outra. E era noite. Apoderou-se de mim um desassossego. E se por fim eu houvesse me dado conta de que essa vida não é a minha, que esses lugares, essas coisas, não cabem em mim? Nada disso me pertence. Talvez fosse esse meu desejo mais secreto; ter outra vida só pra vivê-la de paixões, deixar que se consuma essa vontade de não ser mais eu, de não estar mais aqui. Não sentir mais o ranço das horas, nem o peso dos dias que engolem vidas e deságuam sempre no mesmo recomeçar acabrunhado. Pensar que todo amor é possível, logo válido, que nada termina tão somente porque nos tornamos íntimos demais, e sem mistérios.
Acordei com essa impressão de embriaguez a seco e cãibras nas pernas. Pois agora não quero dormir, tenho medo de despertar desse torpor, descobrir que esse sonho é tudo o que resta pra sonhar.

Desperta o velho ancorado navio e deixa-me á deriva no mar.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Ernesto Sabato (1911-2011)


Faleceu na madrugada do último sábado o escritor argentino Ernesto Sabato, autor do monumental Sobre Heróis e Tumbas. Deixo aqui parte do belo post do blog da Companhia das Letras.
Um trecho de A resistência:

É impossível o homem permanecer humano a essa velocidade; vivendo como autômato, será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão indissociável da vida do homem quanto a sucessão das estações para as plantas ou para o nascimento dos bebês.

Estamos a caminho, mas não caminhando, estamos a bordo de um veículo sobre o qual nos movemos sem parar, como uma grande jangada, ou como essas cidades orbitais que dizem que haverá no futuro. Já nada se move a passo de homem. Por acaso algum de nós ainda caminha lentamente? Mas a vertigem da velocidade não está somente fora, nós já a assimilamos à mente que não pára de emitir imagens, como se também ela fizesse zapping; e talvez a aceleração tenha chegado ao coração, que já pulsa em ritmo de urgência para que tudo se passe rápido e não permaneça. Este destino comum é a grande oportunidade, mas quem se atreve a saltar fora? Tampouco sabemos mais rezar, porque perdemos o silêncio e também o grito.

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Na vertigem da velocidade, tudo é temível e o diálogo entre as pessoas desaparece. O que dizemos uns aos outros são mais números do que palavras, contém mais informação do que novidade. A perda do diálogo sufoca o compromisso que nasce entre as pessoas e que pode fazer do próprio medo um dinamismo capaz de vencê-lo e dar a elas maior liberdade. O problema mais grave, porém é que nesta civilização doente não há apenas exploração e miséria, mas também uma correlativa miséria espiritual. A grande maioria não quer a liberdade, tem medo dela. O medo é um sintoma do nosso tempo. A tal ponto que, raspando um pouco o verniz, é fácil perceber o pânico que subjaz nas pessoas que perseguem as exigências do trabalho nas grandes cidades. A exigência é de tal ordem que se vive automaticamente, sem que os atos sejam precedidos de um sim ou um não.

A maioria da humanidade é empregada de um poder abstrato. Há empregados que ganham mais, e outros que ganham menos. Mas quem é o homem livre que toma as decisões? Essa é uma pergunta radical que todos temos de nos fazer até escutar, na alma, a responsabilidade a que somos chamados.

Acredito que é preciso resistir: esse tem sido meu lema. Hoje, contudo, muitas vezes me pergunto como encarnar essa palavra. Antes, quando a vida era menos dura, eu teria entendido por resistência um ato heroico, como negar-se a continuar sobre este trem que nos leva à loucura e ao infortúnio. Mas pode-se pedir às pessoas tomadas pela vertigem que se rebelem? Pode-se pedir aos homens e às mulheres do meu país que se neguem a pertencer a esse capitalismo selvagem, quando eles têm de sustentar os filhos e os pais? Se eles carregam tal responsabilidade, como poderiam abandonar essa vida?

A situação mudou tanto, que devemos reavaliar com muita atenção o que entendemos por resistência. Não posso lhes dar uma resposta. Se eu a tivesse, sairia por aí como o Exército da Salvação, ou como esses crentes delirantes ― quem sabe os únicos que realmente acreditam no testemunho ―, proclamando-a pelas esquinas, com a urgência que nos deveriam dar os poucos metros que nos separam da catástrofe. Mas não. Intuo que é algo menos formidável, mais modesto, algo como a fé num milagre, o que quero transmitir a vocês nesta carta. Algo condizente com a noite em que vivemos, não mais do que uma vela, algo que nos ajude a esperar.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Septimus Warren Smith

“Os homens não devem cortar árvores. Há um Deus. (Anotava tais revelações nas costas de envelopes.) Mudar o mundo. Ninguém mata por ódio. Torná-lo conhecido (tomou nota). Esperava. Escutava. Um pardal, pousado na grade em frente, piou “Septimus, Septimus”, quatro ou cinco vezes, e, cascateando as suas notas, continuou a cantar, alto, com frescor, em palavras gregas, que o crime não existe, e, tendo chegado um outro pardal, cantavam ambos, com voz prolongada e penetrante, em grego, dentre as árvores do prado da vida, à margem de um rio onde passeavam os mortos, que a morte não existe.”
Woolf, Virginia. Mrs. Dolloway

sábado, 16 de abril de 2011

Coletivo



Andar de ônibus não está entre em minhas atividades favoritas. Nunca esteve. Aliás, duvido dessa hipótese: alguém que ande de ônibus motivado por uma espécie de prazer, que escolha deliberadamente fazê-lo porque acordou com desejo. É uma necessidade. Indispensável para aqueles que não possuem carro, ou possuem, mas que por algum motivo, talvez preguiça ou economia, resolveram não usá-lo no dia. E para todos nós, e todos os outros, para qualquer um, existe o ônibus.
O ultimo livro do escritor e tradutor carioca, Rubens Figueiredo, tem como pano de fundo, e componente essencial da trama, o coletivo urbano. Confesso que ainda não li, está na minha lista gigantesca de leitura, porém a sinopse me pareceu muito interessante. Retirei do site da Companhia das Letras, segue:

PASSAGEIRO DO FIM DO DIA
Rubens Figueiredo
Companhia das Letras

De radinho no ouvido, lendo a intervalos, observando o que se passa dentro do ônibus e fora nas ruas, Pedro, sem se dar conta, costura as ideias. Ao fim da viagem ele não será mais o mesmo: o que vê e pensa durante o trajeto, os fatos de sua vida, seus afetos, o mundo em que está imerso, tudo reunido terá formado um novo conhecimento, mais profundo e mais crítico, mas que nem por isso o deixará desprotegido numa sociedade em que parece não haver como fugir de um destino opressivo.

O ônibus como símbolo da opressão, ou simplesmente como imagem opressiva, mesmo que óbvia, é muito forte e pertinente porque expressa exatamente aquilo que imaginamos quando a vemos: um inferno caótico e sufocante. Sustento tal afirmação ancorado pela minha farta experiência em viagens desconfortáveis, superlotadas e depressivas. A mais pura raiva que nos assalta logo nos minutos iniciais de viagem não resiste ao lento, porém progressivo, sentimento de alheamento que o corpo, tomado de cansaço e submetido ao desconforto, oferece à mente. O desânimo escala as pernas até alcançar as entranhas do estômago e se instala no peito como musgo em pedra, e de lá adormece nossos olhos; anula os pensamentos. O que mais me impressiona é que antes disso, antes de nos entregarmos ao torpor, há uma espécie de batalha, um confronto entre os ocupantes que já estão no coletivo e os novos que vão sendo tragados para dentro da embarcação. Arma-se no céu uma luta por espaço, uma revolta nem sempre tão silenciosa entre os do fundo contra os da frente, entre os que empurram e os que são empurrados, os que restaram de pé contra os sentados. Como uma descarga elétrica a sensação de que estamos uns contra os outros se espalha rapidamente. Porém, se é mesmo verdade, então quem estará a nosso favor, quem nos protegerá de nós mesmos? Talvez nossa redenção esteja nos pequenos atos: o vento que entra por uma fresta da janela, uma gentileza ao estranho a nossa esquerda, podemos até lhe oferecer o assento, ou quem sabe uma troca furtiva de olhares, plena de desejo. O que nos resta é uma promessa; algo de bom escondido nas vestes esfarrapadas do cotidiano.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Esse negócio de micronarrativa é uma farsa

Pedro e Judith
Pedro voltou à leitura. Judith apagou o cigarro no chão da cozinha, foi até a sala, pôs um cd no Semp Toshiba PC-5639 e aumentou o volume até o talo. Pedro foi para o banheiro com o livro debaixo do braço. Lá sentou-se no vaso e deu prosseguimento a leitura. Judith teve vontade de se jogar pela janela, mesmo assim continuou com a dança.

Bom dia
Sheila recebeu uma ligação e a saldou com um efusivo “boa tarde”, ainda que fosse manhã, e nem reparou na ligeira confusão que fizera. A pessoa do outro lado da linha, apesar da decepção, preferiu não alertá-la.

Xenofobia
Ludimila chegou apressada na empresa e deixou a bolsa na primeira mesa que viu pela frente. Não esperava encontrar a chefa nordestina atirada no chão ao lado da mesinha do café. Temeu represálias.

Hotel das Estrelas
Irani partiu com a alça da bolsa meio rasgada, os cabelos desgrenhados e um embolo no peito, misto de medo e decepção, de raiva também. Teve o resto das coisas jogadas na calçada. Sentiu vergonha do chinelinho de dedo que calçava.

O amor
Meu amor, disse Marilene, porém, logo depois, sacudiu a cabeça e abriu um sorriso desinteressado e acolhedor. Ultimamente dera para confundir o nome do marido com o do colega, ás vezes o chamava de Gustavo com tanta insistência que Marcos atendia. No entanto, ao ouvi-la chamando meu amor um calafrio lhe percorreu a alma, os olhos se perderam em algum ponto entre a tela do computador e o calendário de parede, e o pescoço enrijeceu. Engasgou. Calma, Gustavo, arrematou Marilene.

domingo, 13 de março de 2011

Os desaparecidos

Atento ao barulho que vinha do corredor, denunciando um sobe e desce intenso nas escadarias do prédio, o homem, o vizinho do 302, conhecido pelo outros moradores como o esquisito, ou aquele que não cumprimenta ninguém, ou ainda tido como esnobe, decidiu averiguar com seus próprios olhos o que estava acontecendo. Antes ligou para a sua ex-mulher dizendo que algo estranho estava a ocorrer no prédio. Ela lhe mandou a merda, disse que a deixasse em paz, não bastava o inferno que ela tivera de passar ao seu lado? Queria agora lhe torturar também? Chocado com a reação hostil da mulher, ligou para o sindico do prédio que, surpreso, não imaginava como ele, o esquisito, tinha o número do seu telefone se ele não falava com ninguém?

O que? Respondeu o síndico com a voz embargada de sono. É isso mesmo, um assalto no prédio. Assalto no prédio? Repetia o síndico. Estão roubando os apartamentos do ultimo andar, eu ouvi tudo. Não, eu não estou ouvindo nada, mas faz o seguinte: chama a polícia. Não, nada de polícia, polícia não. Nós temos que pegá-los em flagrante. Nós? Não. Você está maluco, fica dentro de casa, não é nada. Fica quietinho aí.

O síndico desligou o telefone, se dirigiu à janela, abriu bem os vidros e colocou a cabeça para fora de maneira a aguçar os sentidos auditivos. Ouvi alguns rumores, uma espécie de som abafado, como se fosse uma voz tentando gritar, porém sendo tapada com a ajuda de algum pano, ou talvez com as mãos. Não é nada, deve ser uma festinha, apenas jovens se divertindo. Melhor voltar a dormir.

O vizinho do 302 percebeu que estava por sua própria conta e risco, que havia chegado a hora, o país lhe chamava a ação. Abriu a porta suavemente sem fazer nenhum barulho, e logo viu homens em trajes civis, de óculos escuros, retirando nas costas pessoas com as mãos amarradas e capuzes na cabeça. Não levavam móveis, nem eletrodomésticos, nem caixas de jóias ou cofres de dinheiro. Respirou aliviado, ainda bem, eram apenas os seqüestradores. Fechou a porta e tratou de dormir.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Feliz Aniversário!


- Colher pequenos frutos; é disso que a vida é feita.
Conte-nos outra história, pai; pediram os meninos crentes da sabedoria oculta do velho. Crédulos como são os filhos, nem tanto pela pretensa e cumulativa habilidade de decifrar enigmas que possuem os pais, mas muito mais pela presença monolítica, pelo sentimento que só os super-heróis de histórias em quadrinhos são capazes de desperta em nós. Isso era o que sentiam ao olhar para o velho.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Lisboeta

Sonhei ontem à noite com uma jovem portuguesa. Seus cabelos eram curtos e castanhos, o rosto delicado, sorria com os olhos. Chamava-me por um nome que agora não lembro, ou que talvez não tenha compreendido. Estávamos em Portugal numa estação de trem. Sei que ela existe, sei que em algum lugar as pessoas com quem sonhamos respiram e também recordam de nós, e vivem com essa impressão, ás vezes quase um mal estar, de que alguém, um estranho, a elas está conectado. Desconhecemos em absoluto a face desse processo, porém o sentimos como coisa concreta. A menina sorria e a mim dirigia um afeto que só os amantes são capazes de tê-lo. Ela é como uma realidade que acontece alheia a minha vontade, existe de fato naquele espaço, no desejo e na carne.

Estou em um lugar cercado de árvores, como se fosse uma clareira, onde há uma piscina e uma tenda com teto de palha. No rádio toca uma cumbia. É verão e todas as pessoas falam espanhol entre si. Alguns brincam com bolas de plástico coloridas e colchões infláveis, outros dançam lascivamente exibindo os corpos em trajes mínimos. A tarde tem cheiro de celebração. Uma mulher jovem, não muito distante da adolescência, seu olhar é atrevido, quase uma provocação, puxa uma cadeira para perto de mim - estou sentado, pernas cruzadas, folheando um jornal - encosta o joelho no meu e se escorra no braço da cadeira para me falar ao ouvido. Pergunta se conheço Portugal. Sei que ela já sabe a resposta, a verdadeira, porém, digo que jamais estive lá, não reconheceria o lugar nem por fotografias. Ela balança a cabeça e solta uma risada, o gozo contido nesse som também me deixa um sorriso estampado no rosto. Não consigo contê-lo. “É a sua chance de mudar a nossa vida”, ela diz. Nossa vida, ao invés de nossas vidas; pressuponho que somos como pedaços de metais imantados. Ela se vira e segue em direção ao burburinho da piscina.

Não importa se existimos aqui ou em Portugal, o tempo escorre vagarosamente enquanto escrevo. O sol está forte e o vento sopra em mim a impressão de que não há tal coisa como o agora e o depois, nem as lembranças que se acumulam sem que na verdade as desejemos. A Lisboeta dos olhos sorridentes mantém os lábios quase que colados ao meu rosto, o hálito morno e adocicado, posso senti-lo arranhando minha pele. Talvez ela esteja dizendo que nos encontraremos novamente, muito em breve, ou, ainda, que me espera em qualquer tempo, seja no sol do pacifico ou num sonho abafado de fevereiro, ou quem sabe, simplesmente estejamos ali, infinitos.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

terça-feira

Não sei se mantenho o guarda-chuva fechado ou aberto. Parece que ele além de reter a chuva, segura também em suas hastes a passagem do tempo, mas é difícil mantê-lo aberto enquanto caminho. Há vento na chuva, ou, talvez, o contrário, há vento demais nessa chuva miúda e teimosa. Desvio das armadilhas nem tão brandas da calçada; lajotas em falso, mármores partidos, pessoas deitadas no chão e um pouco de lixo deixado para trás pelo caminhão da coleta. Penso, enquanto caminho, porém não medito sobre o ato de caminhar, ele é involuntário, se determina por leis próprias, que estamos todos imbuídos desse sentimento infatigável de perda e solidão. Apesar disso, ou, talvez por isso, ele, esse sentimento difuso, que não é simples nem único, é que o que liga nossos guarda-chuvas vermelhos num frêmito de compaixão.

Acabo de ouvir estampidos de tiros. Sim, tenho certeza, o som é inconfundível. Vejo através do recorte da janela pessoas saindo das lojas e escritórios, invadindo as calçadas, curiosos e incrédulos, talvez compadecidos, para assistirem o resultado da tragédia que suponho ter acontecido, ou, talvez, simplesmente temerosos de que o mesmo fim os aguarde. Pensam, sem muita convicção, que existe sim uma maneira de evitá-lo, que essas coisas, eventos trágicos e violentos, ocorrem apenas com certo tipo de pessoas. Nunca conosco, com os que são próximos, com os que amamos. Nunca se está suficientemente preparado para qualquer situação, nem felicidade extrema ou desgraça aviltante, nem para a morte ou nascimento, por entre nossas bem erguidas linhas de defesa infiltra-se, silenciosamente, como um vírus, a presença insidiosa do inevitável.

Ouço as sirenes da polícia, ambulâncias, o tráfego é interrompido. Alguém agoniza lá fora, na calçada úmida da João Pessoa. Ainda resta mais da metade do tempo desta terça-feira. A tarde será longa, preguiçosa e arrastada como as tardes devem ser, o almoço nos convida ao sono, mas o relógio nos impele ao trabalho. A chuva, mesmo persistente, é pacifica, em contraste a nós próprios, ainda que aposentados, soldados da fortuna, hoje empunhamos guarda-chuvas, não mais a lança. Alguém deixou escrito numa página: a existência não é a perfeição, mas é necessária.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O anjo pálido



“Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar ou não! Eu ouso inclinar-me e tomar ou não! Sou uma besta trêmula ou tenho o direito de... “
Um febril Raskólnikov á Sônia Semeónovna

Creio que tudo que poderia ser dito sobre Crime e Castigo, obra-prima de Fiódor Dostoievski, já foi dito, escrito e reescrito. Obra ímpar que nos arrasta junto com a alma torturada de Raskólnikov, após matar uma velha usurária e sua irmã a machadadas, através de uma São Petersburgo lúgubre e impiedosa. Febril é o estado da alma. A culpa reclama o castigo, afirma Dostoievski em carta expondo a idéia central do romance: “O castigo pelo crime amedronta muito menos o criminoso [...] porque ele mesmo o reclama (moralmente).” Leitura obrigatória.

“...Bem, mas isso suponhamos, aconteceu durante a doença, no entanto veja mais uma coisa: matou, mas se considera um homem honrado, despreza as pessoas, anda por aí como um anjo pálido.”

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

bolo recheado com creme de chocolate meio amargo

Para Dany Rocha.

Comprou o bolo do próprio aniversário e 2 litros de coca-cola. Se não fosse ele mesmo a fazer isso ninguém mais o faria. Eles é que não fariam, contudo comeriam o bolo e reclamariam que foi pouco, quase não deu pra repetir, e que faltou refrigerante. E não podia ser qualquer refrigerante, tinha que ser coca-cola. Sem falar nos salgadinhos, não podia esquecer de buscá-los. Ninguém lhe daria presente algum, nunca davam, ainda assim apareciam todo ano naquela mesma data para lhe dar os parabéns. Depois começavam as reclamações, o bate boca, barulho de vidro quebrando, possivelmente copos, e então partiam apressados sem muita cerimônia.

Não conseguia captar, nem mesmo superficialmente, a natureza do afeto que lhe ofereciam, se é que podia interpretar dessa maneira as palavras e gestos que dirigiam a ele. Não, aquilo não se parecia com afeto, era mais como uma manifestação, ou reafirmação, da existência de um laço comum entre eles, uma espécie de dívida que os unia. Pareciam usurários que estavam ali para cobrar o que haviam lhe dado durante os anos de infância.

Talvez estivessem lhe cobrando as roupas que haviam comprado quando ele era criança, mas que logo depois não serviram mais perdendo assim a utilidade, ou as despesas com médicos: pediatras, oculistas, ortopedistas, além das custas com remédios. Ainda nessa conta estavam creditadas as mensalidades da escola, do curso de inglês e da hora dos professores particulares. Porém, mais do que qualquer outra coisa, mais do que os aborrecimentos e as noites em claros, estava ali somado o constrangimento e a vergonha que ele os havia feito passar com seu jeito de menino “desajeitado”, como se fosse um desamparado sem pais, um enjeitado. No entanto, talvez, nada disso correspondesse com exatidão aos fatos passados, poderia muito bem ser apenas parte de uma manobra para lhe infundir um sentimento de culpa, de obrigação intransponível. Bom ou ruim, não importava, havia entre eles uma dívida ancestral, ontológica, de gratidão aos de sangue.

Todos sentados no sofá da sala aguardando um pedaço de bolo e um prato de salgados, ávidos pela ração, igual a cães. Batiam talheres, derrubavam comida no chão, usavam dois, três, copos diferentes, vociferavam e agiam como se ele ali não estivesse. Antes de adentrarem no apartamento estendiam-lhe a mão, distribuíam tapinhas nas costas, as mulheres dois beijinhos na face, e o empurravam contra o marco da porta invadindo a casa como se fossem vacas no curral. Deixariam o banheiro imundo, o chão da sala pisoteado de bolo, alguns copos quebrados e era bem possível que roubassem alguma coisa, qualquer coisa, por mais insignificante que fosse. Um cd, um cinzeiro, uma caixa de fósforos ou até mesmo o jornal do dia anterior. Afinal, quem eram aquelas pessoas?

O homem apoiou o bolo no antebraço e com a outra mão que estava livre agarrou a sacola com a coca-cola. Abriu a porta do carro e colocou o pacote no banco do carona e a sacola no chão. Acendeu um cigarro e o fumou até pouco mais da metade, depois o deixou escorado no canto da boca. Como se fosse um cirurgião abriu o papel que protegia o bolo, tirou a bituca dos lábios e a enfiou até que ela desaparecesse na cobertura branca de glacê. Lambeu os dedos que havia lambuzado um pouco e fechou o embrulho com a mesma precisão. Não podia esquecer de pegar os salgadinhos.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

2011

Algo novo que nos transporte para fora da pedra bruta e cimento.
O milagre da transformação.
Novo Ano. Caminhei uma quadra e vi duas pessoas dormindo na calçada escaldante de uma tarde de verão em Porto Alegre lá pela casa dos 40º graus. Um deles dormia exatamente no fio da calçada, no limite que o separava do abismo do asfalto. Sonhava em posição fetal.
Renascimento.
Ano Novo, velhas obsessões. Os mendigos, as mulheres, os transeuntes insones, os anônimos dormitando no ônibus.
O mistério da vida.
Na praia, na virada do ano novo, no marco zero das nossas vidas, pensei: não há motivos para não celebrar esse momento. Molhei os pés na água salgada do mar, olhei o céu em polvorosa e agradeci. Senti uma felicidade silenciosa. Tudo é mistério, nada do que está aqui me pertence. A vida é o grande sonho de Deus e sua trupe de mendigos.