segunda-feira, 27 de setembro de 2010

IN ON IT



Ontem tive o prazer de assistir a essa peça maravilhosa na programação do 17º Porto Alegre Em Cena. E os atores são Excelentes! Maravilha mesmo.

IN ON IT

” Uma palavra em minha própria defesa,
na qual eu luto contra clichês enquanto
procuro metáforas e me vem à mente
um casaco e algo que de repente se apaga.
Um casaco largado no chão
e algo que de repente…
Não é como uma vela – não é
como uma brisa curta e rápida
ou um brilho que se apaga
devagar e, depois, fumaça.
É súbito.
E não deixa traços.
Só um vazio inominável – um nome
daria muito peso – causado por algo que
de repente se apaga e não
deixa nada pra trás.
Nada, nem mesmo um nada
pra sustentar o nada.
E um casaco largado no chão. “

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Café Ancien

Existe no centro da cidade, numa rua pequena de prédios cor de chumbo, um café que permanece intocado pelo tempo. Desde que o conheço é o mesmo, o balcão marrom com a barra dourada para apoiar os pés, os espelhos laterais próximos das mesas de mármore, os cinzeiros de vidro transparente. Lá no fundo a escada em caracol que leva aos banheiros. Desconfio que seja o único – o último – lugar em toda a Porto Alegre onde ainda se pode fumar. Nunca fumei, mas quando venho aqui tenho vontade de fazê-lo e de me transformar num desses velhos de colete de lã, camisa xadrez e calça de linho. Eles formam o que eu chamo de assembléia dos anciãos da aldeia. Fumam e bebem café preto enquanto manuseiam o destino da humanidade como hábeis titereiros que são. Decidem se os planos e desejos dos homens se realizarão ou se tudo não passará de quimeras. Se a mulher de cabelos loiros, ainda molhados do banho, que caminha apressada levando a bolsa prensada contra o corpo, chegará ao serviço a tempo de evitar a segunda advertência no mês, ou se o chefe dela ficará preso no cruzamento entre a Rua Borges de Medeiros e a Avenida Ipiranga, devido ao acidente que ocorrerá se o caminhão de gás, que trafega na outra mão da avenida, esticar a velocidade de modo a pegar o último vapor de sinal amarelo, antes que ele se torne vermelho, e o menino de mochila preta, moletom e capuz na cabeça, coloque um dos pés, como é destro por instinto será esse, na listra branca da faixa de segurança. Talvez ele nem pense nisso, se devia ou não esperar os carros pararem em definitivo, porque a música que escuta no fone de ouvido é tão perfeita que tem o poder de fazê-lo sentir-se como se estivesse num filme e tudo a sua volta é inofensivo, que todos – o jornaleiro, os pedestres, os motoristas – também são atores e como ele sabem de antemão o que devem fazer. Talvez um pressentimento, uma sacudidela nos fios que o prendem, o faça parar e não prosseguir. A verdade é que ninguém sabe o que os velhos tramam, nem os motivos. Velhos demiurgos aposentados.

Adoro vir aqui e tragar esse aroma de café e cigarro. O valor do expresso é justo e o copo de água mineral com gás é por conta da casa. As garçonetes são mulheres de meia-idade, simpáticas, donas de corpos que ainda exalam vitalidade, conforme o gosto da freguesia. A atendente do caixa é a mais jovem, uma balzaquiana de cabelos negros, olhos fulgurantes que me consomem como fogo em papel. Tenho vontade de convidá-la para sentar e tomar um café, mas confesso que a cantada está longe de ser original, ainda que honesta.

Os velhos não temem o tempo, aqui ele não os alcança, perde seu efeito ferruginoso. Sinto-me confortável entre eles. Imagino que me aceitam porque sabem que eu partilho de seus segredos e que venho observá-los porque um dia assumirei uma dessas cadeiras ou, talvez, eu já esteja aqui há tanto tempo que nem percebi. Talvez um outro eu ande por aí, prisioneiro das horas, correndo de um lado para o outro, tentando valer-se de algum indício de realidade. Talvez um dia ele passe em frente ao Ancien e imagino que não ficará surpreso ao me encontrar, pois o fato é que tem me procurado desde sempre. Os anciãos o conduzirão até a minha mesa e eu lhe pagarei um expresso á moda da casa.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Alice

Fábio sai do quarto deixando a porta entreaberta. Acende um cigarro e fica no escuro observando a brasa arder.

- Não agüento mais esse colchão, está acabando com a minha coluna. ttssc... Preciso parar de fumar.

Dá mais algumas tragadas e amassa a bituca no velho cinzeiro de plástico. Volta para o quarto e logo repara as janelas abertas, a cama vazia. Alice não está. O cérebro não compreende o que vê. Olha ao redor e não encontra nada. Fábio era um homem pragmático, acreditava na lógica. Aquilo que não possuía esse atributo não merecia crédito. Caminha até a janela decidido a fechá-la, mas antes tenta prender as cortinas que se agitam no ar. O vento que entra da rua é gelado. Este pequeno detalhe - o vento gelado no rosto – e o inesperado sumiço de Alice aparentemente desprovido de significado fazem-lhe sentir um arremedo de raiva, um desprezo quase infantil. Talvez ela estivesse em outra parte da casa se escondendo, fazendo jogo, talvez tentando seduzi-lo. Talvez. Mas ele não gostava de surpresas. Fábio apreciava como ninguém a ordem. Ajeita as calças do pijama e distrai-se ao contemplar o formato que as nuvens adquirem com a rajada de vento. Enquanto se regozijava brevemente com essa visão, Alice surge do escuro num pique desatinado e joga-se contra ele. A janela bate algumas vezes com força tirando da madeira um grito estridente. O corpo de Fábio paira no ar numa infinidade de segundos como se pudesse voar. Fábio sabe voar, pensa Alice. O som do corpo chocando-se contra o chão é tão violento que poderia acordar toda a vizinhança e mais alguns quarteirões. Alice fita o céu azulado.

Fazia um belo dia lá fora apesar do frio. A bruma da noite anterior se agarrava nas árvores e no gramado dos quintais. O sol se erguia aos poucos distendendo seus braços raiados sobre a terra, refletindo um pouco na poça de sangue que circundava Fábio. Sentia o corpo dormente, não conseguia movê-lo, não entendia o que estava acontecendo. Era como se sua consciência houvesse se fragmentado em duas partes; uma presa ao corpo e outra a cabeça, no entanto não podiam comunicar-se. A cabeça mandava o corpo mover-se do chão. O corpo, sem sucesso, dizia para Fábio despertar. Teve o desejo de falar, chegou até imaginar que estivesse falando, mas não conseguia discernir os pensamentos. Os dedos da mão esquerda batiam ininterruptamente na calçada. Sentiu-se cansado. Teve vontade de fechar os olhos.

Alice voltou para cama, fechou os olhos e deixou que a mente fluísse. Percorreu todas as peças que compunham o quebra cabeça de sua vida, os mistérios e atos que haviam lhe trazido até o presente momento. Relembrou algumas músicas e pensou nos livros que havia lido quando jovem. Viu inúmeros rostos e dentre eles reconheceu Fábio. Os olhos lúgubres e silenciosos, a barba cerrada, os sulcos que marcavam a face morena. Aquela imagem distante estava arraigada à sua memória como se fosse a extensão de um braço, e a consciência desse fato lhe causou estranhamento. Durante todos aqueles anos fora assombrada pela certeza de que as coisas jamais mudariam. Era um nó na garganta, um suspiro que escapava sem querer. A mesma casa, as mesmas cores, os mesmos convidados nas festas de Natal. Não entendia porque se entregar à complexa e vã necessidade de cumprir todos os rituais daquela vida comezinha e perceber que não havia nada de humano naquilo, nada que lhe trouxesse o frescor ou mesmo a agonia de estar viva. E assim foram os domingos de almoço, as intermináveis tardes de chá, as noites vazias. Sorrisos ecoavam como fantasmas pelos cômodos desabitados da casa. Para outras pessoas o futuro podia até ser impenetrável, para Alice era real. E tudo que ele havia trazido era uma pequena propriedade na praia. Uma casa branca com janelas verdes encravada na encosta de um morro, de frente para uma praia imensa de águas turvas e geladas que açoitavam as pedras. A visão se perdia entre o céu e o mar, tudo parecia demasiadamente distante. Por todos os lados via-se apenas solidão. Alice era o refúgio do mar.

O resto era trocar objetos por outros objetos e todos tinham seu tempo definido e desapareciam sem deixar nenhum vestígio. Assim devia seguir a vida. Talvez a única coisa que pudesse alterá-la fosse a morte. Não interessava quem fosse morrer, mas só através dela poderiam ver o quanto desejaram e pouco que haviam conseguido. No entanto esse dia não veio. Desde então Alice não pôde mais dormir tranqüilamente, não pôde nem mais sonhar. Parecia que o ar não lhe chegava aos pulmões. Tinha a sensação de estar se transformando em mármore. Fábio nunca se esforçou para compreender além daquilo que via. Não entendia a aflição muda que consumia Alice, seu olhar absorto em algo que nunca estava lá. Aquele silêncio também acabou por envolvê-lo. Fábio não podia tocá-lo e passou a sentir um desassossego que lhe cortava a alma e reconheceu em Alice a origem do seu mal estar. Tornaram-se estranhos num mundo sem portas. Mas agora nada disso importava.

Naquela manhã Alice adormeceu tapada de cobertas até o pescoço, quase não conseguia respirar. Deitada na cama, que agora lhe parecia muito grande, foi acolhida por um sentimento tão terno e familiar que imaginou estar em sua antiga casa, quando ainda era uma menina de olhos miúdos. Dormiu assim até escutar o som da campainha e a multidão de vozes e passos que se aglomeravam na soleira da porta.