segunda-feira, 16 de abril de 2012

um coração doente


Não que odiasse a vida ou o mundo, talvez nem odiasse alguma coisa de verdade. Não era tão ruim assim, havia tido bons momentos, até poderia dizer que eles haviam sido a maioria. Era apenas o tempo que aquilo se prolongava. Um sentimento infatigável de ausência, a falta de algo que até então não soubera decifrar. Algo que estava sempre aquém, fora, que talvez um dia chegasse, que talvez tivesse forma, mas ele não a conhecia, talvez um rosto ou nome. Pensou que era o amor, as mulheres. Depois achou que deveria escolher uma e persistir. Achou que tivesse a ver com o dinheiro e a falta de um trabalho que lhe preenchesse as ambições. Porém, abandonou naturalmente esse pensamento, pois nem um nem outro, dinheiro ou trabalho, lhe moviam as ambições, e também não saberia dizer se as tinha ou quais eram.

Supôs que sofria de uma espécie de dilema adolescente. Fizera tudo o que pudera para amadurecer. Trabalho, graduação, casamento, contas. Ainda não havia tentado um filho. Amigos seus já haviam feito, estavam passando pela experiência e pareciam felizes nas fotos. Imaginou que fosse algo que também pudesse fazer. Sim, podia, mas, ainda assim. Num dia qualquer, numa tarde amena de início de outono, olhando televisão enquanto sua companheira dormia, sentiu que havia algo errado: o sol lá fora, as pessoas na televisão, a respiração compassada da mulher, o quarto em que estavam deitados. Dessa vez não era a falta, mas um mal estar como se o ar estivesse minguando no peito. Deu-se conta que não era a vida, talvez até alguém desejasse de estar no seu lugar; de lhe tomar o emprego, a casa. Não era a vida que estava errada. Chegou à conclusão de que era dono de um coração doente, um órgão infértil que o fazia desapaixonar-se - batia desinteressado, e a esse coração havia entregado sua vida, e outros também o haviam feito sem saber. Contudo, agora já não podia esconder o fato de si mesmo. Deitou-se na cama com os olhos abertos num infinito pensar, o teto ruiu-se aos pedaços e revelou um céu esmaecido.

Comprou um revólver usado de um vizinho policial aposentado, um trinta e oito cano curto todo preto. Sua ideia era dar um tiro no peito, bem no coração, e assim trocá-lo por outro. Porém não queria um transplante, um coração combalido e cheio de más recordações de um infeliz qualquer que tivesse morrido acidentalmente. Precisava ele mesmo construir um novo coração. Pegou uma folha de papel em branco e nela o desenhou com esmero, apesar das linhas tortas. Depois escreveu os nomes das pessoas que amava e das coisas que haviam sido boas. O nome da mãe e dos irmãos, da mulher, do cachorro, de alguns amigos e o de uma banda que gostava desde a adolescência. Lembrou-se da praia onde veraneava quando criança e a incluiu ao lado da avó. Deixou um bom espaço em branco e disse que iria enchê-lo dessa vez.
Sentou-se na única poltrona que havia na sala de estar, de frente para a janela, e com a ponta dos dedos apalpou demoradamente o peito. Sentiu que algo lá dentro se encolhia de maneira que teve certeza de que encontrara a localização exata do coração. Tirou do bolso o coração de papel que havia feito, desdobrou-o com cuidado e o prendeu na camiseta com um alfinete no local em que o outro se encontrava. Encostou o cano do revólver no peito e coração disparou.