quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Intruso

A verdade é que não desejei ficar aqui vendo-o fazer nada. E esse é exatamente o problema: o nada fazer que nos desgasta lentamente, uma espécie de coma induzido que o mantém preso a esse lugar, sentado na poltrona reclinável azul marinho deformada pelo corpanzil que a pressiona. O livro quase colado ao rosto é um disfarce ridículo para um homem desse tamanho, é como se um elefante tentasse se esconder com uma folha de parreira. A esposa já havia desistido, não tinha mais palavras com que atacá-lo, de vez em quando, agora muito raramente, lançava-lhe uns olhares de ódio resignado. No entanto preferia dar o tratamento pelo qual ele tanto ansiou: o desprezo.

Contudo, após anos alguns anos de convivência, eu sei: ele também não queria estar ali atrelado a um metro quadrado de espaço e a um móvel inerte e velho. Havia um homem sob aquela forma pachorrenta de óculos, barriga saliente e calva avantajada ou, pelo menos, podia-se entrever que um dia existiu alguém pleno de vontade em seu lugar.

Ao vê-lo se atirar na poltrona tenho a impressão de que irá se desmanchar como a gema de um ovo numa frigideira, e escorrerá pela almofada até atingir o chão. Recompõe-se da melhor maneira que consegue e pega o livro de cima da banqueta, a mim parece sempre o mesmo livro de capa branca com um desenho borrado do rosto de um homem e logo abaixo o título em letras vermelhas. Vira os olhos para janela piscando com incrível freqüência, o pensamento lhe foge da cabeça e, convulso, chacoalha o corpo. Depois a cabeça pende para frente e demora a recobrar os sentidos.

Minha tarefa é vigiá-lo, porém, no começo, quando cheguei aqui, ele ainda idealizava que talvez pudesse fazer algo grandioso do resto de sua vida, algo do qual realmente se orgulhasse. Nos recônditos da sua alma havia uma vontade desorganizada, ínfima, porém desesperada, de tentar o que fosse necessário para obter os prazeres e o reconhecimento que lhe haviam negado a vida inteira. Pois foram esses os pensamentos que nos uniram. Ao invés de imaginar-se como era, a cara redonda e os olhos miúdos de miopia, via o meu rosto como se fosse o seu, falava com a minha voz, tomava de empréstimo meu corpo. Eu lhe dei uma sobrevida. No entanto, o que ganhei como retribuição foi o seu temor, olhares assustados de quem vê assombrações. Minha vontade é desligá-lo como se fosse uma televisão, puxar-lhe os cabos da tomada. Atemorizado ele sabe o que penso, e, inutilmente, enfia o rosto dentro do livro.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Milhões de centímetros cúbicos de concreto





CTBA

CTBA







Milhões de centímetros cúbicos de concreto.

Amei Curitba desesperadamente. Curvas e linhas de concreto, avenidas que deságuam em prédios monolíticos. O Paço da liberdade, o prédio da Universidade Federal, a Av. Marechal Deodoro. Minha impressão é de que a cidade foi planejada em detalhes, não nasceu desordenadamente, mas se ergueu pela força do próprio desejo. Linda beleza de concreto. E eu, tomado de pequenez provinciana, fui arrebatado pela cidade. Saí do hotel lá pelo fim da tarde, o clima era levemente abafado, e desemboquei na Marechal Deodoro. Tocava Beatles – Abbey Road – no meu mp3 player. Vi aqueles prédios enormes encravados na avenida que aos meus olhos transbordava gigantesca. A luz do sol se derramava branda pelo asfalto, quase desmaiada, não era mais possível vê-lo. Tomado de uma espécie de epifania caminhei pela rua como se soubesse onde estava indo. Deixei que aquela visão arrastasse meus pés cansados, segui-os tão somente, e engoli a cidade à medida que ela também fazia o mesmo comigo. Olhei tudo nos olhos, olhei cada pedra e cada mistério escondido nos mais ínfimo detalhe. Soube de toda história por trás de cada parede erguida, do suor, dos sonhos e do sangue ali contido. Cruzei praças, cafés e igrejas. Cruzei semáforos, automóveis e pedestres. Cortei-os de dentro para fora. Exauri todas as minhas forças e quando dei por mim já estava deitado no leito branco do hotel. A cortina entreaberta deixava-me a mostra um pedaço do céu calcinado. Meus pés doíam de uma maneira inusitada, tive a sensação de tê-los colocados no chão pela primeira vez. Pela manhã tomei um banho gelado e desci do quarto já com minha mala. Fiquei no hall aguardando o motorista que me levaria para o aeroporto. Rabisquei umas linhas até que ele chegasse. Prometi vê-la novamente.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

gaveta virtual (dos achados e paridos)

Esse post é um oferecimento de Ana Dundes. Pitonisa, mãe e poeta. Gracias Sra. Passarinha


monstro
(Texto de Marcelo Martins)
*
O monstro vive dentro de uma panela,
come carne vermelha e
usa camisas velhas

Tem sudorese noturna,
Pesadelos matinais,
Sonhos em hebraico

Na verdade
Ele não passa de um imbecil
Pseudo-culto que
leu alguns livros,
viu poucos filmes
E vive de inveja
----------------------------------------------

re-verso de monstra
(Texto de Ana Dundes)
*
Mostro-te
Monstro!
Desmonto-me
De monstro:
aqui jaz
o defeito
do afeto
desfeito
*

Publicado no blog gaveta virtual em 16 de março de 2007. Era uma sexta-feira

terça-feira, 9 de novembro de 2010

La Résistance


Estava bem difícil sentar para escrever e atualizar o blog. Consegui. Firme na resistência. Em breve notícias do Paul McCartney.

Para não perder viagem segue trecho de um romance do Coetzee que li recentemente. Baita Livro!

“Somos todos participantes do mercado global: se não competirmos, pereceremos. O mercado é onde estamos, onde nos encontramos. Como viemos parar aqui não podemos perguntar. É como ter nascido num mundo em que não temos direito de escolha, de pais desconhecidos. Estamos aqui, só isso. Agora é nosso destino competir.
Para os verdadeiros crentes do mercado, não faz sentido dizer que você não sente prazer em competir com seus próximos e prefere se retirar. Pode se retirar, se quiser, dizem eles, mas seus concorrentes com toda certeza não se retirarão. Assim que você depuser as armas, será abatido. Estamos aprisionados inelutavelmente numa batalha de todos contra todos.”

J.M Coetzee, Diário de um ano ruim

Self made man

A dor nas costas não o faria desistir, estava determinado. Caneta azul na mão esquerda e o papel branco sob a mesa de jantar. Antes de preparar o café escolheu um disco que fosse apropriado ao momento. Algo suave que pudesse circular pelo ambiente ao invés de instalar-se nele. Elegeu uma coletânea de Chet Baker, havia sido apresentado ao jazz recentemente e ainda estava aprendendo a degustá-lo. Com esmero passou o café, serviu-se uma xícara fumegante e sentou-se á mesa defronte a janela. Acreditava no esforço mais do que no talento ou em imprevisíveis “insights”. O talento é preguiçoso prefere a luxúria ao trabalho e ele acreditava na força dos seus punhos. Orgulhoso de si mesmo intitulava-se um “self made man”. Apesar de leigo na língua inglesa ouvira a expressão num programa de tevê, uma entrevista com um sociólogo americano em visita ao Brasil. Aquele termo o enaltecia. Ele, um homem que havia moldado seu destino com as próprias mãos, que extraíra dinheiro e respeito da mais pura adversidade. Um lutador. Queria contar sua história, deixá-la incrustada na face de uma gentinha que pouca fazia além de reclamar por direitos. Direitos adquiridos por leis obtusas, não foram de fato conquistados. Não passavam de um bando de parasitas, aproveitadores filhos da puta. Mirou a noite que se distendia a sua frente, o céu banhado de um vermelho negro que prenunciava pancadas de chuva. O caderno o esperava desafiador, as linhas simétricas, uma abaixo da outra até o final da página. Coçou a cabeça, depois a apoiou na mão direita. Olhou o dicionário que repousava sob a mesa, as horas no relógio que reluzia no pulso, a aparência de suas mãos embrutecidas. Notou que elas tremiam. Estranhou a luminosidade lúgubre do abajur que ficava quase encostado na janela, a imobilidade de todas as coisas que havia na sala e fora dela, como se o mundo estivesse parado e houvesse se soltado da roldana do tempo e a vida agora apenas roçasse sua pele. Sentiu o corpo contraindo-se involuntariamente e o coração acelerado de espanto. Levantou-se aturdido empurrando a mesa e depois se debatendo nas paredes do corredor do apartamento. Trancou-se no banheiro e aguardou.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sweet Jane, Ventura

Acredito que, de alguma forma não explicada, atraio os mendigos de rua, sobretudo quando estou de fones ouvindo Lou Reed cantar Sweet Jane. Talvez seja ele que os atraía, e não eu.

Hoje tinha um jogado no chão como que engolido pela calçada, dormindo com a boca entreaberta. Na verdade mendigos são inconfundíveis, não há como compará-los com alguma outra coisa, não permitem metáforas. Não consigo vê-los como um “pacote jogado no chão”. Um pacote de gente.

A boca entreaberta, a barba suja, as calças rotas marcada por uma rodela de urina. Era tão somente 13h45min e o sol estava no ponto mais alto do céu, ardendo uma promessa de verão inclemente. Carros movendo-se aos solavancos pressionados pelos motoqueiros soldados kamikazes, funcionários retornando do almoço, e o mendigo adormecido no mármore quente. Eu poderia escrever que fui o único a parar por mais de 10 segundos para olhá-lo e ver que ele tinha cabelos compridos e grisalhos, que vestia uma camiseta vermelha, mas eu estaria sendo tremendamente hipócrita. O mendigo continuou lá, e eu estou aqui. Não o levei para casa, não lhe dei esmola nem um cigarro. Ele nada me pediu, apenas estava ali na calçada, dormindo como se o mundo ao redor não fizesse parte do seu sonho. Outras pessoas também paravam por alguns instantes para observá-lo como que a verificar se era mesmo uma pessoa deitada no chão, ou se, talvez, não era uma dessas intervenções artísticas.

Da onde eles vem?
Homens que brotam do útero da cidade, ou que talvez dêem vida a si mesmo como homens-monstros, uma espécie distorcida de Frankenstein.
Na volta ele já não estava mais lá, ou foi tragado pela calçada ou cozido pelo sol. Lembrei que já havia escrito um conto sobre um mendigo. Dei-lhe o nome de Ventura e coloquei o Lou Reed pra rodar novamente.

“Algumas pessoas gostam de sair pra dançar
E outras têm que trabalhar, observe-me agora!
E há sempre algumas mães malévolas
Bem, elas lhe dirão que tudo isso é apenas sujeira
Você sabe que, as mulheres, nunca desmaiam de verdade
E aqueles vilões sempre piscam os olhos, woo!
E você sabe, as crianças são as únicas que ficam vermelhas!
E que a vida é só pra morrer!
E todos que tiveram um coração
Eles não se virariam e o quebrariam
E qualquer um que já fez um papel
Não se viraria e o odiaria
Sweet Jane! “

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Último Cigarro

Ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir. Dei uma longa tragada, a brasa ardia preguiçosa no escuro. O último cigarro.

Há quem diga que dar a palavra é o mesmo que firmar um compromisso. Eu não. Conheci Dora Sarlo num bingo no centro da cidade numa tarde agradável de outono. Era uma senhora atraente para sua idade, viúva, dada a futilidades e viciada em jogos. O marido foi um grande exportador do ramo calçadista. Morreu com dois tiros na cabeça deixando toda a fortuna para a mulher. Não tinham filhos. Ela dizia que o velho era mesquinho, teve o que mereceu. O crime nunca foi solucionado. Mas naquela tarde detalhes dessa natureza não me interessavam. O bingo era um lugar pouco melhor do que a sinuca que ficava em frente a pensão e menos divertido que um bordel da Farrapos. Não esperava encontrar lá mulheres requintadas, cheias de grana, do tipo que viajam pela Europa com o amante. Quando me aproximei de Dora queria apenas diversão. Ela estava faceira e já bastante embriagada, dava olhares lascivos para qualquer um que a encarasse. Não foi preciso mais do que um sorriso para sentar-me ao seu lado. Disse que a sua risada era gostosa, ela respondeu que eu devia ser um cafajeste. Afirmei que sim; que ela estava correta e se me desse a oportunidade eu lhe mostraria o quão cafajeste eu poderia ser. Riu alto - ela gostava de pessoas vulgares. Gostei de você, disse. Fomos para sua casa na Zona Sul. Fiquei impressionado com a entrada do casarão, vi que ela não era pouca coisa.

Foi fácil enredá-la, dizer o que ela queria ouvir, dar um tanto de carinho,atenção. Dentro de pouquíssimo tempo eu já tinha acesso total a casa. Dormia e comia lá, dirigia o carro como se fosse o dono, via futebol jogado no sofá da sala. Depois ela começou a me vestir, comprava desde as cuecas até os sapatos. Nem precisei esconder que de fato era um aproveitador e vivia disso, pediu apenas que eu desse a minha palavra de que não a trairia e tudo que ela tinha também poderia ser meu. “Dou minha palavra”. Cruzei os dedos e beijei-os. Ela sorriu como jamais eu voltaria a ver. Surpreendia-me que uma mulher como ela, que já tinha visto de tudo na vida, ainda pudesse acreditar em promessas.

A vida nos apresenta poucos lances de sorte. Tinha plena consciência disso, estava diante dos meus olhos, podia tocá-lo. Sem filhos ou outros herdeiros, ou mesmo parentes que se opusessem a nossa união, passamos a morar juntos. Agora eu tinha carros, dinheiro a vontade, roupas sempre novas. Dora não se importava com minhas escapadelas noturnas, concordava que eu era jovem e precisava de alguma diversão além dela. O único limite intransponível, sob hipótese alguma, era ter uma amante que vivesse à custa do dinheiro que ela me dava. Não suportava a idéia desse tipo de traição, isso não era apenas desrespeitá-la, era tomá-la por imbecil. É mau negócio uma sanguessuga sustentar outra. Andava com mulheres diferentes, não mantinha vínculo com ninguém, não dava nem o número do telefone.

De fato o jogo parecia ganho, a vida boa acabara por me amolecer e depois de quase um ano sentia-me imensamente frustrado. Foi aí que surgiu Maíra, a empregadinha da casa que dormia lá durante a semana. Era uma moça jovem de pele morena queimada do sol, pernas torneadas escondidas atrás da saia e do avental, olhar acesso, atento a tudo que acontecia. Minha ocupação, então, passou a ser persegui-la pelos cômodos da casa. Logo ela entendeu a natureza do jogo e o aceitou. Tornei-me obcecado pela garota, pelo modo como me repelia e depois desejava, pelo cheiro acre do seu corpo e pelas marcas que ela em mim deixava. Passávamos os dias envolvidos nessa disputa, furtivamente, pelos cantos da casa, em qualquer horário, fosse madrugada ou cedo da manhã. Não sei se Dora desconfiava de algo, sei que quase não nos falávamos mais e tê-la ao meu lado era enfadonho e triste. Certa noite pediu que eu fosse ao banco sacar um dinheiro e depois a farmácia comprar um de seus tantos remédios. Na volta eu teria uma surpresa. Em segundos sai do torpor em que me encontrava e tornei-me lúcido de todos os vestígios que eu e Maíra vínhamos deixando há semanas.

Quando voltei, Dora estava maravilhosamente vestida, a mesa de jantar posta e sobre ela uma caixa embrulhada para presente. Sorri um tanto sem jeito e perguntei o que estávamos celebrando. Ela sorriu também, maneando a cabeça. Abra, disse, apontando para o embrulho. Abri e dentro da caixa havia um pequeno estojo marrom de alianças. Retirei-o de lá fingindo surpresa. Dora pegou o estojo, abriu a tampa, segurou uma das alianças e a colocou no meu dedo. Fiz o mesmo com ela, e, de mãos entrelaçadas, disse que me amava e nos declarou marido e mulher como se fosse o padre. Beijou-me a boca com languidez incomum. O jantar foi servido por Maíra que me olhava de soslaio com ar de deboche. Bebemos um vinho excelente, demos boas risadas, fizemos planos de viagens e continuamos bebendo. Minha apreensão arrefeceu.

Acordei com uma ressaca descomunal, sentindo muito frio e com a boca seca. A cama estava úmida, parecia molhada. Olhei para o lençol manchado de vermelho e senti no corpo um liquido espesso e pegajoso. Saltei da cama e vi Maíra deitado ao lado, nua, coberta de sangue e com a garganta atorada, quase separada do pescoço. Senti vertigem, tive vontade de gritar e chorar também, mas não o fiz. Rastejei até o banheiro e comecei a me lavar na pia, só depois atinei a ir para debaixo do chuveiro. Enquanto limpava o sangue fui colocando ordem nos pensamentos. Deveria ter ido embora quando tive oportunidade. Dora armou uma cilada. Deixou apenas Maíra de empregada na casa e de certo colocou algo na bebida. Pela profundidade do corte na garganta um homem deve tê-lo feito. O próximo passo é me incriminar, a polícia já deve estar a caminho. Vesti as primeiras peças de roupa que encontrei e sai sem levar nada além da imagem da menina degolada que um dia fora Maíra. Confuso, acabei escondido num hotel do centro da cidade. O crime ganhou as manchetes dos jornais e Dora estava desaparecida. Pensei que ela tinha me deixado lá com o corpo para que a polícia nos encontrasse, depois viria a público corroborar os fatos e livrar seu nome. Mas não o fez, continuava sumida e com isso passaram a acreditar que eu havia matado as duas. Mudei de hotel, fui parar nas imediações da Rodoviária. Sair da cidade era a melhor opção, talvez a única, no entanto não tive coragem de fazê-lo. Ser preso era uma questão de tempo. Um dia, ao despertar, encontrei uma carta no chão próximo a porta. Dentro do envelope um cartão branco trazia escrito com esmero: “até que a morte os separe”. Não estava assinado. Creio que de certa forma pude compreender Dora. Esperei. Então ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

No Deserto




“Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõe-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa ,a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, “leves”, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não agüentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto.”

No teu Deserto
Miguel Sousa Tavares

sábado, 2 de outubro de 2010

Ventura

Vi a cena de relance: o homem de pés descalços, bermuda colorida e moletom roto, cor de sujeira, atravessa a rua impassível desafiando os carros em alta velocidade. Máquinas possantes conduzidas por gente apressada. Os carros param como se em reconhecimento a divindade que lhes cruza o caminho. O homem alcança a calçada do outro lado e segue num trote majestoso até sumir da minha vista.

Apesar da brevidade do encontro o reconheci. Dizem que ele já teve muito dinheiro, que foi dono de empresa ou advogado, que já dirigiu máquinas tão poderosas quanto as que acabara de intimidar, que já teve conta em banco – e só gerentes o recebiam, que tinha mulher e filhos. Um dia desci para fumar um cigarro na calçada do prédio onde trabalho e vi o homem todo desgrenhado fuçando no lixo. Quando me viu, veio em minha direção trançando os pés como se bailasse, ao invés de caminhar, e pediu um cigarro, porém, não o fez com palavras, mas levando os dedos aos lábios e soltando no ar uma fumaça inexistente. Não hesitei, dei-lhe o cigarro e o acendi. Ele me olhou com a rigidez obsessiva do destempero e foi se afastando sinuosamente como um caranguejo sem dar-me as costas. O porteiro veio me dizer aquelas coisas que eu disse antes, que ele teve dinheiro, um empresário, talvez advogado, que foi casado. Disse também que havia escutado por aí que ele ficou desse jeito por causa da cachaça, ou das drogas, ou ambos, que foi abandonado pela mulher, o filho pequeno morreu num acidente de carro. A verdade ninguém sabe. Seguido estava por ali dançando, tergiversando com sacos de lixo. Foi a primeira vez que tive contato com ele.

Chamei-o de Ventura, o mendigo, o Baryshnikov da calçada. Tinha unhas cumpridas e pretas de tão encardidas, uma barba rala que teimava em não crescer e a pele bem morena como que queimada do sol. Os pés sempre descalços. Não sei como resistia ao inverno. O porteiro disse-me que ele também já havia se questionado a mesma coisa inúmeras vezes, até que vasculhou a memória e percebeu que jamais o vira durante o inverno, apenas no verão. Deduzimos que ele abandonava a cidade com a chegada do frio e retornava junto com o calor. Provavelmente se escondia do inverno em alguma praia do Caribe. Ventura, o mendigo caribenho. As vezes aparecia com um copo de cachaça, nunca garrafas, e como um possesso executava passos de Tap Dance, batendo o solado do pés contra o chão. E por mais que tentássemos, não trocava palavra alguma conosco. Fumava os cigarros que eu lhe dava, fuçava no lixo e dançava. Nada mais.

Um dia Ventura sumiu e nunca mais apareceu. Simples assim. O porteiro disse que é exatamente isso que acontece aos mendigos. “Simples assim”. Até que o vi ressurgir atravessando a rua. Logo pensei que estava vendo-o pela ultima vez, que eu deveria ter parado o carro e ido até lá lhe oferecer um cigarro, confessar que eu imaginava – sim, era isso que eu pensava enquanto sorria vendo-o dançar - que de alguma forma, não saberia dizer como, poderia ajudá-lo a mudar de vida. Tentei descobrir como ele havia acabado nas ruas catando lixo, mas ele nada falava, creio que nem entendia. Apenas olhava-nos com seu rosto de mistério, com seu furor obsessivo de bailarino. Queria que ele partilhasse a sua dor comigo, mas não havia tristeza em seu olhar, nem alegria, nada. Será que Ventura escolhera aquela vida? Ao vê-lo cruzar a rua como um transatlântico soçobrando ao mar, me questionei se não estávamos todos vivendo o reverso do mundo, assim como ele, ou, talvez, Ventura tenha acreditado que vivia seu próprio sonho, contudo não entendera que a vida é o sonho de Deus.

Ventura foi parar nas ruas após entrar em surto com a morte de sua família num acidente de automóvel. Perambulou durante anos até ser reconhecido por um antigo fã dos tempos em que brilhava no palco dos Teatros. Ele o tirou das ruas, deu-lhe banho, comida e uma cama limpa. Nessa noite Ventura imaginou que estava de volta ao tablado, lugar do qual seu espírito jamais se afastara. Dançou novamente, leve e harmonioso como a bruma da manhã. O meu sonho terminaria assim e nele eu dançaria na rua num dia de chuva, tal qual Gene Kelly.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

IN ON IT



Ontem tive o prazer de assistir a essa peça maravilhosa na programação do 17º Porto Alegre Em Cena. E os atores são Excelentes! Maravilha mesmo.

IN ON IT

” Uma palavra em minha própria defesa,
na qual eu luto contra clichês enquanto
procuro metáforas e me vem à mente
um casaco e algo que de repente se apaga.
Um casaco largado no chão
e algo que de repente…
Não é como uma vela – não é
como uma brisa curta e rápida
ou um brilho que se apaga
devagar e, depois, fumaça.
É súbito.
E não deixa traços.
Só um vazio inominável – um nome
daria muito peso – causado por algo que
de repente se apaga e não
deixa nada pra trás.
Nada, nem mesmo um nada
pra sustentar o nada.
E um casaco largado no chão. “

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Café Ancien

Existe no centro da cidade, numa rua pequena de prédios cor de chumbo, um café que permanece intocado pelo tempo. Desde que o conheço é o mesmo, o balcão marrom com a barra dourada para apoiar os pés, os espelhos laterais próximos das mesas de mármore, os cinzeiros de vidro transparente. Lá no fundo a escada em caracol que leva aos banheiros. Desconfio que seja o único – o último – lugar em toda a Porto Alegre onde ainda se pode fumar. Nunca fumei, mas quando venho aqui tenho vontade de fazê-lo e de me transformar num desses velhos de colete de lã, camisa xadrez e calça de linho. Eles formam o que eu chamo de assembléia dos anciãos da aldeia. Fumam e bebem café preto enquanto manuseiam o destino da humanidade como hábeis titereiros que são. Decidem se os planos e desejos dos homens se realizarão ou se tudo não passará de quimeras. Se a mulher de cabelos loiros, ainda molhados do banho, que caminha apressada levando a bolsa prensada contra o corpo, chegará ao serviço a tempo de evitar a segunda advertência no mês, ou se o chefe dela ficará preso no cruzamento entre a Rua Borges de Medeiros e a Avenida Ipiranga, devido ao acidente que ocorrerá se o caminhão de gás, que trafega na outra mão da avenida, esticar a velocidade de modo a pegar o último vapor de sinal amarelo, antes que ele se torne vermelho, e o menino de mochila preta, moletom e capuz na cabeça, coloque um dos pés, como é destro por instinto será esse, na listra branca da faixa de segurança. Talvez ele nem pense nisso, se devia ou não esperar os carros pararem em definitivo, porque a música que escuta no fone de ouvido é tão perfeita que tem o poder de fazê-lo sentir-se como se estivesse num filme e tudo a sua volta é inofensivo, que todos – o jornaleiro, os pedestres, os motoristas – também são atores e como ele sabem de antemão o que devem fazer. Talvez um pressentimento, uma sacudidela nos fios que o prendem, o faça parar e não prosseguir. A verdade é que ninguém sabe o que os velhos tramam, nem os motivos. Velhos demiurgos aposentados.

Adoro vir aqui e tragar esse aroma de café e cigarro. O valor do expresso é justo e o copo de água mineral com gás é por conta da casa. As garçonetes são mulheres de meia-idade, simpáticas, donas de corpos que ainda exalam vitalidade, conforme o gosto da freguesia. A atendente do caixa é a mais jovem, uma balzaquiana de cabelos negros, olhos fulgurantes que me consomem como fogo em papel. Tenho vontade de convidá-la para sentar e tomar um café, mas confesso que a cantada está longe de ser original, ainda que honesta.

Os velhos não temem o tempo, aqui ele não os alcança, perde seu efeito ferruginoso. Sinto-me confortável entre eles. Imagino que me aceitam porque sabem que eu partilho de seus segredos e que venho observá-los porque um dia assumirei uma dessas cadeiras ou, talvez, eu já esteja aqui há tanto tempo que nem percebi. Talvez um outro eu ande por aí, prisioneiro das horas, correndo de um lado para o outro, tentando valer-se de algum indício de realidade. Talvez um dia ele passe em frente ao Ancien e imagino que não ficará surpreso ao me encontrar, pois o fato é que tem me procurado desde sempre. Os anciãos o conduzirão até a minha mesa e eu lhe pagarei um expresso á moda da casa.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Alice

Fábio sai do quarto deixando a porta entreaberta. Acende um cigarro e fica no escuro observando a brasa arder.

- Não agüento mais esse colchão, está acabando com a minha coluna. ttssc... Preciso parar de fumar.

Dá mais algumas tragadas e amassa a bituca no velho cinzeiro de plástico. Volta para o quarto e logo repara as janelas abertas, a cama vazia. Alice não está. O cérebro não compreende o que vê. Olha ao redor e não encontra nada. Fábio era um homem pragmático, acreditava na lógica. Aquilo que não possuía esse atributo não merecia crédito. Caminha até a janela decidido a fechá-la, mas antes tenta prender as cortinas que se agitam no ar. O vento que entra da rua é gelado. Este pequeno detalhe - o vento gelado no rosto – e o inesperado sumiço de Alice aparentemente desprovido de significado fazem-lhe sentir um arremedo de raiva, um desprezo quase infantil. Talvez ela estivesse em outra parte da casa se escondendo, fazendo jogo, talvez tentando seduzi-lo. Talvez. Mas ele não gostava de surpresas. Fábio apreciava como ninguém a ordem. Ajeita as calças do pijama e distrai-se ao contemplar o formato que as nuvens adquirem com a rajada de vento. Enquanto se regozijava brevemente com essa visão, Alice surge do escuro num pique desatinado e joga-se contra ele. A janela bate algumas vezes com força tirando da madeira um grito estridente. O corpo de Fábio paira no ar numa infinidade de segundos como se pudesse voar. Fábio sabe voar, pensa Alice. O som do corpo chocando-se contra o chão é tão violento que poderia acordar toda a vizinhança e mais alguns quarteirões. Alice fita o céu azulado.

Fazia um belo dia lá fora apesar do frio. A bruma da noite anterior se agarrava nas árvores e no gramado dos quintais. O sol se erguia aos poucos distendendo seus braços raiados sobre a terra, refletindo um pouco na poça de sangue que circundava Fábio. Sentia o corpo dormente, não conseguia movê-lo, não entendia o que estava acontecendo. Era como se sua consciência houvesse se fragmentado em duas partes; uma presa ao corpo e outra a cabeça, no entanto não podiam comunicar-se. A cabeça mandava o corpo mover-se do chão. O corpo, sem sucesso, dizia para Fábio despertar. Teve o desejo de falar, chegou até imaginar que estivesse falando, mas não conseguia discernir os pensamentos. Os dedos da mão esquerda batiam ininterruptamente na calçada. Sentiu-se cansado. Teve vontade de fechar os olhos.

Alice voltou para cama, fechou os olhos e deixou que a mente fluísse. Percorreu todas as peças que compunham o quebra cabeça de sua vida, os mistérios e atos que haviam lhe trazido até o presente momento. Relembrou algumas músicas e pensou nos livros que havia lido quando jovem. Viu inúmeros rostos e dentre eles reconheceu Fábio. Os olhos lúgubres e silenciosos, a barba cerrada, os sulcos que marcavam a face morena. Aquela imagem distante estava arraigada à sua memória como se fosse a extensão de um braço, e a consciência desse fato lhe causou estranhamento. Durante todos aqueles anos fora assombrada pela certeza de que as coisas jamais mudariam. Era um nó na garganta, um suspiro que escapava sem querer. A mesma casa, as mesmas cores, os mesmos convidados nas festas de Natal. Não entendia porque se entregar à complexa e vã necessidade de cumprir todos os rituais daquela vida comezinha e perceber que não havia nada de humano naquilo, nada que lhe trouxesse o frescor ou mesmo a agonia de estar viva. E assim foram os domingos de almoço, as intermináveis tardes de chá, as noites vazias. Sorrisos ecoavam como fantasmas pelos cômodos desabitados da casa. Para outras pessoas o futuro podia até ser impenetrável, para Alice era real. E tudo que ele havia trazido era uma pequena propriedade na praia. Uma casa branca com janelas verdes encravada na encosta de um morro, de frente para uma praia imensa de águas turvas e geladas que açoitavam as pedras. A visão se perdia entre o céu e o mar, tudo parecia demasiadamente distante. Por todos os lados via-se apenas solidão. Alice era o refúgio do mar.

O resto era trocar objetos por outros objetos e todos tinham seu tempo definido e desapareciam sem deixar nenhum vestígio. Assim devia seguir a vida. Talvez a única coisa que pudesse alterá-la fosse a morte. Não interessava quem fosse morrer, mas só através dela poderiam ver o quanto desejaram e pouco que haviam conseguido. No entanto esse dia não veio. Desde então Alice não pôde mais dormir tranqüilamente, não pôde nem mais sonhar. Parecia que o ar não lhe chegava aos pulmões. Tinha a sensação de estar se transformando em mármore. Fábio nunca se esforçou para compreender além daquilo que via. Não entendia a aflição muda que consumia Alice, seu olhar absorto em algo que nunca estava lá. Aquele silêncio também acabou por envolvê-lo. Fábio não podia tocá-lo e passou a sentir um desassossego que lhe cortava a alma e reconheceu em Alice a origem do seu mal estar. Tornaram-se estranhos num mundo sem portas. Mas agora nada disso importava.

Naquela manhã Alice adormeceu tapada de cobertas até o pescoço, quase não conseguia respirar. Deitada na cama, que agora lhe parecia muito grande, foi acolhida por um sentimento tão terno e familiar que imaginou estar em sua antiga casa, quando ainda era uma menina de olhos miúdos. Dormiu assim até escutar o som da campainha e a multidão de vozes e passos que se aglomeravam na soleira da porta.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Asobi Seku

Não sei se os dias me ultrapassam ou se tão somente me consomem. O dicionário define ultrapassar como o ato de ir além; transpor, exceder, e com certeza os dias o fazem, vão muito além do que eu sou capaz de suportar. A primeira definição de consumir é destruir (-se) totalmente, já a quinta é fazer uso de; utilizar, gastar. De qualquer forma por ambos sou deixado para trás, assolado pelos golpes do mundo.
Com certa apreensão aguardo Nicolas ligar pedindo que o encontre com o carro em boas condições, é o que nós dois esperamos, e isso fica implícito na conversa. Ele está em perfeitas condições, não há com o que se preocupar.

Um dia como o de hoje cansa. Um dia consagrado a espera, no entanto foi a única coisa que me restou. É como estar num buraco esperando alguém para me tirar de lá. E talvez esse alguém já esteja me aguardando, na beira do fosso, com uma pá de terra nas mãos. Não quero soar paranóico - psicose caracterizada por um conceito exagerado de si mesmo e idéias de perseguição, reivindicação e grandeza, que se desenvolvem progressivamente, sem alucinações. Gosto de encontrar o verbete correto. Ele já devia ter ligado. Agora vou ficar empenhado com esse carro. Logo mais vai ser noite, a vizinhança vai estranhar. São esses os sinais de que o dia começa a se exceder, o inominável passa a nos espreitar. Ele é a forma reversa de todos os atos e coisas que existem.

O telefone descansa na mesa de centro, as luzes da rua estão acessas e o sol deixou uma réstia alaranjada no céu. Não posso mais esperá-lo. Sinto a movimentação interna dos objetos, tão denso como se fosse o frio suspenso no ar, as sombras tornaram-se mais negras. Tempo esgotado. Pego a chave do carro, abro e fecho a porta com a suavidade que o silêncio exige e quando coloco a mão no corrimão da escada que me levará para fora do prédio, ouço o som inconfundível do telefone celular ressoando pelo corredor, um som limpo e estridente que se repete com persistência. Levo a mão ao bolso da calça, apesar de já saber que o esqueci em cima da mesa de centro. Azar. Pulo alguns lances de escada e quase deixo o molho de chaves cair. Por algum motivo que desconheço não há ninguém na portaria. Antes de chegar até a grade do prédio vejo um homem se aproximando do carro. O inominável. O dicionário define-o assim: o que não pode ser designado por um nome. Contudo, não é apenas isso, o que não tem um nome que o manifeste, é aquilo que não pode ser representado por nada que exista nesse mundo, é aquilo que excede nossa compreensão.

Assim que meus pés tocam a calçada saio correndo. O mundo ao meu redor, pelo menos parte dele, o pedaço que ainda reconheço, canta-me uma melodia suave - voz e violão. A música é familiar, a voz de uma mulher. Vejo Nicolas do outro lado da calçada sorrindo o seu sorriso de dentes falhados, acenando sua mão muito clara repleta de sardas. Uma luz esbranquiçada se derrama por sobre a rua de pedras negras, tenho a visão cegada. A cena lembra-me um dia de praia onde tudo reflete a claridade insuportável do sol. Tenho a impressão de que tudo, todas as coisas: carros, árvores, lixeiras, postes, guaritas, convergem em minha direção. O mundo pulsa e encolhe até escuridão. Nicolas põe as mãos no bolso, seu sorriso está quase no fim, não entendo o que ele diz. Ouço apenas a voz da mulher que canta, é japonês o seu idioma e, não sei bem o porquê, posso compreendê-lo.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Teia de Aranha

Os minutos aqui dentro se arrastam enquanto lá fora o mundo explode. Alguns estão bebendo desde a manhã, outros iniciaram agora à noite e creio que poucos, assim como eu, não o fazem. Não posso afirmar que o álcool seja o único responsável pela euforia das pessoas nem por todo esse bombardeio, é apenas efeito de mais um final de ano. Apesar de já tê-lo vivido uma infinidade de vezes ainda estranho essa histeria que impregna o ar. Estranho também essa forma de contar o tempo - períodos de 365 dias - não sei qual o significado, como chegaram até ele. Não sinto diferença de um ano para o outro, me parece que o peso das mudanças só chega quando já estamos de mãos vazias incapazes de agir. O mais importante não é contar os dias, mas retê-los e isso eu não fui capaz de fazer. Ninguém foi. Se não fosse pelas olheiras profundas, por alguns cabelos brancos e a calva avançada, poderia dizer que parei no tempo. O ano de 2009 se esvai pelas ruas, que venha 2010.

Observo uma aranha organizar seu ritual de morte para um inseto que por azar, ou por descuido, caiu em sua teia. Ela não o mata logo de inicio, antes dá inúmeras voltas em torno dele, indo de uma extremidade a outra da teia. Depois se aproxima e recua. Repete o movimento mais algumas vezes até que por fim encosta nele desferindo o golpe fatal. Tenho vontade de esmagá-los.

Intensificaram o bombardeio, estamos a menos de 20 minutos do ano novo. Ouço também a voz de minha mulher. Ela, mais um casal de amigos e meus pais querem fazer a contagem regressiva na beira da praia. Desejam ver com seus próprios olhos o milagre do ano novo surgir do mar.

Ao contrário do que pensei o inseto continua vivo se contorcendo na teia. A aranha está imóvel numa das pontas, observando-o com parcimônia. Quando for da sua vontade ela acabará com o jogo. Ela detém um poder demiurgo em suas patas esquálidas e minúsculas. Ela, um inseto insignificante. Não posso matá-los. Vejo o rosto de Vânia contorcido pela impaciência. Chegam até meus ouvidos reclamações; falta de consideração, é tudo que ela consegue dizer e o repete uma infinidade de vezes. Heitor surge na porta. É fim de ano, gente! Não sei por que ele utiliza essa expressão, “gente”, como se ao lançar mão dela estivesse a dissipar a diferença entre nós todos. Olho ao redor e largo a caneta em cima da mesa.

Não sei quanto faltava para meia-noite quando saímos de casa. No céu estouravam fogos coloridos, estrelas e rabos de foguetes. Gritos cortavam o ar sufocado. Tudo se movia assustadoramente. Pessoas que mais pareciam fantasmas num campo batalha, aturdidos pela morte brutal e repentina, surgiam de todos os lados, brotavam do útero da penumbra. Chegamos à beira da praia a poucos minutos da meia-noite. A comoção se espalhava com o vento, senti um mal estar próximo a náusea. Alguns corriam, outros se abraçavam, tiravam fotos, carregavam champagnes, fogos de artifício. Os malditos fogos explodindo no céu. O prenúncio de uma tragédia. Eu via a morte nos espreitando como se ela fosse a aranha na ponta da teia. Alguém falou comigo, mas vi apenas a sombra, metade dela, sussurrando-me palavras. O que ela disse foi encoberto pelo barulho de uma explosão gigantesca, seguida de um clarão que deixou o céu manchado. Corri desabalado em direção ao mar, entrei até onde deu pé, depois caí. Tentei nadar. A água estava gelada, estranhamente pegajosa.

A partir desse momento os fatos não mais obedecem a uma ordem, recordo-me de imagens como se fossem fotogramas dispersos de uma película. Vejo algumas pessoas me retirando inconsciente do mar e depositando meu corpo na areia. Vomito muita água. Vânia em desespero me abraça. Aquele não é o seu rosto, mas sei que é ela. Tento ficar em pé. Rolo pela areia úmida, os mortos me agarram, querem me enterrar com eles. Seus ossos cortam minha carne, rasgam minhas roupas. Preciso me desvencilhar. Vânia está sentada no chão abraçada em seus joelhos. Sinto-me aprisionado como o inseto. Abre-se uma brecha, um facho de luz me atinge. Nu, corro pela rua de pedras escuras.

O quarto é o da casa da praia. Escuto vozes ao fundo, talvez venham da rua. Não lembro quase nada da noite anterior, exceto a imagem da aranha e de sua presa. Levanto e me dirijo à cozinha. Procuro pela teia que estava estendida entre a parede e o armário, próximo ao piso. Nem sinal deles. Sinto os olhares pesando sob minhas costas. Estão todos lá fora me vigiando, empapados de protetor solar, fingindo que tomam banho de sol. Volto para o quarto

Nesse mesmo dia Vânia trouxe-me de volta á Porto Alegre. Durante a viagem falou sobre coisas absurdas que eu teria feito na noite do Ano Novo, que havia me comportado como um louco. Perguntou-me diversas vezes se eu havia ingerido bebida alcoólica, ao final disse que iria pedir o divórcio. Respondi uma merda qualquer e tratei de dormir. Já sei o que virá a seguir, conheço a receita: aumentar a dosagem dos remédios, outro antidepressivo, um regulador de humor, quem sabe um novo psiquiatra. Não faz diferença. A aranha se move em silêncio.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

tentando escrever

Escrever é um exercício de natureza tão radical e severa que sinto-me tragado por esse tour de force, com a necessidade de ir mais ao fundo, a perder de vista o ponto de retorno, cambaleando pelo território inóspito. Escrever é flertar com tudo que há de terrível e sublime no dorso do tempo. Vejo uma jangada á deriva no mar, a vela sobraçando ao vento, milhares de braços a aguardam. Vejo-me de terno e gravata carregando uma pasta de couro vazia, perambulando apressado pelas ruas do centro, como se de mim dependesse muitas decisões. Talvez eu seja o ministro de algum país africano esquecido no Brasil, disfarçado de velho Marcelo. Vejo o futuro e um pouco de passado, vejo também o Lou Reed cantando “Coney Island Baby”, e nem preciso abrir ou fechar os olhos, apenas sigo tentando escrever.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Notícia de Jornal

Desceu do ônibus sem pestanejar assim que a porta abriu. Desceu na parada pouco iluminada sob a imensa avenida que parecia não ter fim. A faixa negra de asfalto era com uma artéria seccionando um corpo gigantesco. Nem pensou, apenas deixou os pés tocarem o chão e correu para qualquer lado. Correu na contramão dos carros que àquela hora da noite eram bem poucos. Os passageiros que permaneceram no coletivo nem viraram a cabeça para ver aonde iria o rapaz em sua fuga desabalada. Acharam que ele havia feito alguma coisa ali dentro, provavelmente roubado alguém, e por isso descera. Grande merda; estavam acostumados a ver bem mais do que isso. Bater carteira era aperitivo de criança. O ônibus prosseguiu e depois dobrou a primeira esquerda.

Correu bem mais do imaginou que suas pernas agüentariam. Sentia o coração na boca batendo contra a murada dos dentes. O corpo pediu que parasse e então se curvou levando as mãos à altura dos joelhos. Respirava com dificuldade e achou que fosse perder os sentidos, porém não desmaiou. Sentou-se no meio-fio da calçada. O ar parecia que não lhe chegava aos pulmões. O homem perde-se á noite, perde o rumo dos pensamentos. Riu-se á toa sacolejando as pernas dormentes, ria do improvável que o trouxera até ali e ria porque se sentia estranhamente livre, mesmo que no fundo condenado. O que é uma arma na cabeça senão um metal gelado, inerte, tão ridículo quanto sua própria natureza? Para que serve um revólver? Não importa, era sua responsabilidade. Ergueu-se com certa dificuldade, também com certo alívio, a descarga de adrenalina o revigorara. Tentou orientar-se buscando algum ponto de referência na escuridão. Viu um posto de gasolina numa esquina não muito distante e alguns metros á frente a cruz de uma Igreja. Não havia melhor indicação. A cruz envolta em neon vermelho brilhando igual letreiro de cabaré. Estava perto, muito perto.

Pôs-se a correr novamente, dessa vez cadenciando os passos como se fosse um maratonista. Não erguia muito os joelhos nem sacudia os braços em demasia. Agora pensava que era uma locomotiva negra e robusta correndo nos trilhos incomensuráveis do destino, ganhando velocidade, rasgando o útero da noite. Após galgar o posto de gasolina tirou das calças um revólver prateado com cabo escuro de madeira. Pesava tanto em sua mão que diminuiu ainda mais a passada, quase trotava. Sentiu-se tentado a dar uns disparos para o alto como se fosse um bandoleiro chegando num vilarejo montado em seu cavalo. Concentrou toda a energia que lhe restava e deu um pique em direção a Igreja com a arma em punho. Parecia até que explodiria o lugar ao chocar-se contra ele. Bendito homem-bomba. Nem chegou a ouvir os estampidos, sentiu apenas o impacto e o calor dos tiros alojando-se no peito. Não teve tempo nem de prender a respiração. Ficou lá jogado no chão até o dia clarear e o sol resplandecer na poça de sangue. Foi recolhido pelo carro do IML enquanto as pessoas se dirigiam ao trabalho.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Um blues para Morgan

Abri o jornal e li numa nota no canto inferior da página, quase no rodapé, que Peter tocaria à noite no Village. Garoto estúpido, não aproveitou nada do que eu havia lhe ensinado. De volta ao berço dos fracassados. O sujeito até podia ter algum talento, mas se ficasse muito tempo por lá acabava liquidado. A decisão veio num arroubo logo após de ter lido seu nome. É hoje. Larguei o jornal num canto.

Quando o conheci ele não era nem uma promessa, era apenas um vagabundo de fala mansa e olhar melancólico. Tinha o raro dom de tirar as músicas de ouvido logo nas primeiras audições. Não sabia ler uma nota sequer, mas conseguia reproduzir tudo que ouvisse com extrema fidelidade. Podia imitar qualquer um e este na verdade era seu talento. Copiava de seus ídolos até os trejeitos, a embocadura no instrumento, a maneira de segurar o cigarro e levá-lo á boca. No entanto, ninguém lhe dava credibilidade alguma, nem para fazer show de aquecimento. Já o meu caso era o contrário. Eu não saía do Village porque não era apradinhado por nenhum figurão, não tinha um rostinho bonito e não perdia meu tempo tocando música dos outros. Mas não era bem isso o que o público queria. Um dia, enquanto passávamos o som, ouvi o sopro de um trompete que mais parecia um lamento, vindo lá do fundo do bar. Vi o garoto sentado na cadeira, as costas arqueadas, tocando de olhos fechados. Parecia o Chet Baker com a franja caída sob o rosto. Na hora entendi o que me faltava para sair do Village. Resolvi me aproximar.
- Tem que parar de tomar pico, garoto!
Ele sorriu.
- Quer um trago?
Também não respondeu. Estava tão chapado que mal podia com o trompete.
- Vê se dá uma melhorada e passa aqui mais tarde para nos ver tocar.
Assentiu com a cabeça como se ela fosse de chumbo. Malditos viciados! Seria fácil convencê-lo a tocar minhas músicas, o problema todo era o que fazer para mantê-lo sóbrio. Mesmo assim estava decidido a arriscar. Peter apareceu no show e ficou feliz que alguém lhe desse atenção. Depois de bebermos bastante com os rapazes da banda, pedi que tocasse para nós “Stella by Starlight”. Ele fez então sua mise en scène e tocou como se fosse o próprio Baker. Todos aplaudiram. Dei-lhe uns tapas nas costas e com um gesto pedi que se aproximasse.
- Isso é pouco garoto, você precisa ir além. Ninguém vai te respeitar desse jeito.
Peter me olhou com um misto de raiva e constrangimento. Devolvi com uma piscadela e sorriso de deboche. Seguimos noite adentro até encontrar o sol nos aguardando na saída. Antes de nos despedirmos coloquei meu endereço no bolso da sua camisa e disse para me procurar quando curasse a bebedeira. Uma semana depois ele apareceu á minha porta com o case do trompete debaixo do braço, sua aparência estava boa. Deixe que entrasse e mostrei-me solícito. Ouvi toda sua história, as proezas sexuais, sua devoção pela música e ambições. E essa foi a deixa para que eu entrasse acenando com a mágica de fazer dinheiro. Seus olhos brilharam ao ouvi-la. Ele tocaria músicas minhas como se fossem composições de sua autoria. Ganharia crédito como artista e fama. Depois, sem que ele antes suspeitasse, eu surgiria cobrando meus direitos e revelando-me como o verdadeiro autor. Além da grana, ganharia espaço para mostrar meu trabalho. O reconhecimento viria naturalmente. Propus divisão de 50% de tudo que ganhássemos. Também impus como condição que não se drogasse durante a semana e nem antes dos ensaios. Aceitou sem titubear e perguntou quando começaríamos. Agora mesmo, respondi. O garoto era um demônio, ninguém tirava as notas como ele. No fim da tarde já executava uma música com perfeição. Fiquei extasiado. No dia seguinte estava lá novamente, ávido por jazz. Em nenhum momento reclamou de minhas composições, inclusive perguntou-me como eu não havia estourado com um material tão bom. Logo nossa engrenagem começou a funcionar. Descolei com o pessoal do Village alguns shows de abertura, depois o coloquei como atração principal. A recepção foi boa o suficiente para depois de algumas semanas colocá-lo no circuito local dividindo o palco com outros músicos. Enquanto eu compunha novas músicas, ocupava-me também de mantê-lo na linha. Cobrava dedicação absoluta e regulava seu uso de drogas. Formávamos uma dupla e tanto. Tratei de arranjar um agente, Charles, viciado em jogos, mas não em drogas, e o incumbi de conseguir a qualquer custo contato com uma grande gravadora. O rapaz era esperto, metade da cidade lhe devia algum favor, e conseguiu levar um figurão para vê-lo tocar. Entrei em cena e o convenci de que Peter era um tipo altamente vendável, de fácil aceitação pelo público, as mulheres não me deixavam mentir. Comprou a idéia. Ao cabo de um ano tínhamos um contrato com uma gravadora de renome, algum dinheiro no bolso e uma chance de ouro nas mãos. Adeus Village. Depois de alguns meses nos preparávamos para gravação do primeiro disco. Acertado o cachê, produção e onde ocorreriam as sessões, vi-me barrado por um brutamonte na porta do Studio. O sujeito dizia-me que eu estava proibido de entrar lá, não devia sequer colocar os pés na calçada. Enfiou um maço de dinheiro no bolso do meu paletó e me presenteou com um murro na boca. Perdi alguns dentes. Fiquei jogado na calçada até me arrastarem para viela ao lado e terminarem o serviço.

Descobri através de Charles que Peter negociava com a gravadora nas minhas costas e além de pedir que me tirassem da jogada, não gravou nenhuma de minhas músicas. O disco foi lançado na metade do ano e ao final dele era um sucesso de vendas. O garoto viajava o país em turnês, lançava mais discos e fazia cada vez mais shows e dinheiro. No entanto, eu tinha certeza de que era só questão de tempo até ele cair. Em turnê pela Europa foi preso com drogas, respondeu processo e teve de passar uma temporada na cadeia. Praticamente banido do velho continente, chegando aqui continuou em queda livre. Passou a ser visto com desconfiança. Drogava-se como louco, seus braços pareciam uma peneira de tantos furos. Não comparecia aos shows, não gravava mais discos. Torrou toda grana. O velho Village foi o único a aceitá-lo de volta. Foi o que nos restou e tínhamos contas á acertar.

Cheguei lá tarde da noite, faltando menos de dez minutos para o inicio da apresentação. Queria entrar sem que me notassem. A casa estava vazia. Velho Stu no balcão, Cora esperando para faturar em cima de algum otário e Durval, o doutor, o homem da medicação, rodeado pelos junkies. A mesma corja de sempre. Peguei uma mesa no fundo, afastada do palco e aguardei na penumbra. Peter, como de costume, estava atrasado. Subiu por volta da meia-noite completamente chapado, parecia um fantasma. O rosto envelhecido, entalhado como uma máscara mortuária, não lembrava em nada o garoto que eu conhecera. O som saía miúdo e fraco do trompete, era sofrível, sem vida. O ódio que eu acalentara no peito e trazia no bolso na forma de um calibre 38, foi sendo embotado por uma névoa espessa de tristeza. Nem lembrava há quanto tempo eu não tocava mais. Fui tomado de vertigem e de repente ouvi meu nome:
- A próxima música é para um amigo de longa data que hoje se encontra aqui conosco. Essa é para você, meu velho. Blues para Morgan.
E sorriu pela última vez.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lobo Antunes

“O que eu gostava, por exemplo, de conseguir, sem ostentação nem vergonha, coroar a minha calvície nascente de um chapéu tirolês de pena. Ou de deixar crescer a unha do dedo mínimo. Ou de entalar um bilhete de eléctrico dobrado n aliança. Ou de atender os meus doentes vestido de palhaço pobre. Ou de lhe oferecer o meu retrato em coração de esmalte para você usar quando for gorda, porque será gorda um dia, descanse, todos nós seremos gordos, gordos, gordos e tranqüilos como gatos capados à espera da morte nas matinées do Odéon.”

Os cus de Judas - Antonio Lobo Antunes

Literatura

Adicionei links para os blogs de dois excelentes escritores. Meu grande amigo, Daniel Rocha, e o muito gente boa, Professor Pedro Gonzaga.
Vale a pena!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Skinny Girls

Veio em minha direção sorrindo, beijou meu rosto, nossos corpos se tocaram. Involuntariamente passei a mão pela sua cabeleira lisa. Desencontramo-nos estranhamente. Ela prosseguiu serpenteando por entre as classes. Sentou-se perto da janela. Tive vontade de fazer o mesmo, sentar-me ao seu lado e tocar novamente seu cabelo, embrenhar a mão nele. Creio que alguém me sussurrou algo, cheguei um pouco para o lado deixando assim a passagem livre. Ela o fez novamente, dessa vez a minha espalda. Olhei por cima do ombro e vi apenas seu vulto longilíneo. Magra, quase sem bunda, nem seios. Sua boca movia-se como se fosse me engolir. Descobri que ela era quinze anos mais nova do que eu. Sentia uma vergonha danada, ficava desconcertado ao seu lado. Fez um gesto com o dedo como a chamar uma criança, depois deu dois tapinhas na almofada da cadeira. Olhei ao redor e vi muitos outros olhos a me espiar. Ela sorria um meio sorriso sem mostrar os dentes, cheio de violência, e repetia o gesto batendo na almofada. O que um homem faz numa hora dessas? Aceitei o papel de bobo, sentei. Quando virei a cabeça buscando sua boca, encontrei um rosto envelhecido com a pele enrugada. A mão que repousou na minha perna estava enrijecida e torta como a garra de um animal. As horas ainda nem haviam passado para nós, era noite lá fora, havia estrelas no céu. A voz retornou aos ouvidos, o hálito quente causou-me arrepios. Encolhi o pescoço, ela tentou mordê-lo. Deu um tapa na minha bunda e foi se afastando da porta até chegar ao corredor. Passou a mão pelos longos cabelos. Ficou estaqueada me olhando, sabia tudo, podia ler os meus pensamentos. Sorriu brevemente, depois moveu os lábios e o nariz como se fosse uma gata. Olhei o relógio e só então percebi que a aula havia terminado, não tinha mais ninguém na sala. As luzes se apagaram lentamente e a mão segurou com força minha perna.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Magnum Espetacular

A visão do circo prendeu-lhe a atenção. A lona branca encardida da fuligem, as bandeirolas esfarrapadas dependuradas no mastro, o acende-apaga intermitente das lâmpadas no letreiro. Não conseguiu ler o que estava escrito ou talvez o tenha feito, mas não reteve o nome na memória, impressionado que ficou com a sujeira da lona. Circo de pobre. Não por acaso estava acomodado na entrada de uma Vila. Se por fora é assim, imagina o que são os palhaços, pensou com desdém e certo rancor. Logo em seguida envergonhou-se do que acabara de pensar e sentiu raiva de si mesmo, do circo e dos pobres.

Fechou o caderno vermelho, guardou-o dentro da pasta marrom e levantou-se da mesa aflito, não sem antes olhar para os estudantes absortos em seus livros. No mínimo duas vezes por semana ia até a sala de estudos da Faculdade que ficava próximo ao seu trabalho para escrever. Sentia-se mais concentrado ali, longe dos barulhos que a mulher fazia no pequeno apartamento. Perturbava-o imensamente o som da tevê, os diálogos insossos dos atores, o intervalo comercial. Ela então o chamava, pedia que viesse até a cama. Detestava esses momentos mais do que a novela. Resolvera escrever para contar coisas que jamais pudera falar.

O circo permanecia lá instalado na avenida, próximo a faixa de segurança, em frente à Vilinha. Ou será que sempre esteve ali? É possível. Talvez estivesse lá há tanto tempo que ninguém mais o notava. O Magum Espetacular adormecido. Quando contou á esposa que iria fazer uma oficina de criação literária ela o olhou com indiferença, curiosidade e reprovação, tudo no mesmo olhar, mas nada disse. O que lhe causou uma apreensão insuportável que o impeliu a falar como se estivesse a justificar-se perante sua mãe. A mulher manteve o silêncio balançando a cabeça uma vez que outra e por fim deixou-o falando sozinho. E o assunto morreu ali mesmo.

Numa tabuleta negra, escrito a giz, lia-se o seguinte: o circo da Espanha. Que piada, pensou o homem após passar pela frente da tenda pela vigésima vez em dez dias. Ficava a caminho do seu trabalho, próximo a faculdade. O grande Magnum andrajoso, abandonado a própria sorte. E nesses dez dias jamais viu alguém entrar ou sair dele. Nem um funcionário na bilheteria ou perto dos trailers. Não via sequer outra pessoa nos seus arredores que não fosse ele mesmo a espreitá-lo, parado do outro lado da avenida.

Talvez estivesse pegando o jeito de escrever ou encontrando o fio narrativo da estória. Gostava tanto de ler que um dia imaginou que pudesse também escrever. Burilava o texto do conto com esmero. Como fora sugerido, andava com uma caderneta a tira colo, a cor era vermelha, anotando os detalhes do “Magnum Espetacular”, o grande circo da Espanha. Da pequena janela da sala onde trabalhava podia vê-lo. Não se lembrava do momento em que o alojaram lá. Tinha a sensação estranha de que ele sempre estivera ali. Não sabia como explicar. Viu as bandeirolas solitárias e o pisca-pisca das lâmpadas do letreiro, chamou-lhe a atenção a aparência suja e desolada. As luzes acessas desde a manhã até a noite sem que aparecesse viva alma. Dia após dia. Até que viu um homem parado do outro lado da avenida, mirando o circo com a mão sob os olhos para protegê-los do lusco-fusco do fim de tarde. Teve a idéia de escrever o conto. E agora passava todas as horas do seu dia pensando nele.

O homem atravessou a faixa num passo curto sem olhar para os lados. Entrou sem hesitar no recorte negro aberto na lona encardida que um dia fora branco. Permaneci na parada de ônibus com o coração apertado esperando que ele saísse de lá em pouco tempo ou que talvez mais alguém entrasse, ou que alguma coisa acontecesse. As luzes apagaram-se. Corri em direção ao circo ouvindo atrás de mim o alarido das buzinas. Guiava-me pelas bandeirolas que se aproximavam com velocidade, esfarrapadas no céu. Passei pela bilheteria vazia e entrei no breu da tenda. Havia um único facho de luz que iluminava dois palhaços que se batiam com luvas de boxe no picadeiro. Na arquibancada, á minha esquerda, um homem escrevia numa caderneta vermelha e a deixou de lado para assistir o espetáculo.

Fechou a caderneta, pegou o resto das coisas e deixou a sala de estudos. Ao invés de aguardar o ônibus abandonou-se ao impulso que o levou até a frente do circo, do outro lado da avenida. Fitou a tenda enorme, toda encardida, por breves minutos que pareceram intermináveis. Atravessou a rua sem olhar para os lados como se deslizasse no asfalto ainda quente do sol. Não havia ninguém na bilheteria. Distinguiu lá no fundo um facho de luz. Antes de entrar virou-se para trás e avistou um homem que do outro lado da avenida olhava em sua direção com a mão sob os olhos, protegendo-os do lusco-fusco do fim de tarde.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Velho Abu

Entrevista concedida em 30/01/2005

"Mylton Severiano - Mas você está cumprindo o seu papel.

Antonio Abujamra - Ah! Mas eu não sou padre, cumprir meu papel! Que é isso? Eu faço meu teatro, falo mal. O meu espetáculo agora lá no Rio... a crítica arrebentou, mas o público aplaude de pé e grita "bravos". Faço o público todo gritar. Falo sobre a democracia, digo que a democracia é fashion, tecnológica, maravilhosa, que só numa democracia ocidental fantástica como essa podemos falar como são asquerosos, sujos, canalhas os nossos políticos. E vou arrebentando. Temos que falar qualquer coisa. Temos que falar assim: "Senhores, isso aqui não é Kosovo, este país não é a Bósnia, não é o Paquistão". Será que não é? Mas digo que não é. "Vocês comeram a comida do povo, vocês comeram a música brasileira maravilhosa." Não entendo por que ainda não aconteceu o desastre de uma guerra civil! É porque Deus ainda não nos entendeu. Aí eu digo: "Nós sabemos que todo governo é filho da puta!" Aí entram dois atores e dizem: "Você tem razão, Abujamra, todo governo é filho da puta". "E vocês aí? Vocês também acham?" "Também." "E desse lado aqui?" "Também." E fica um negócio que parece que eles vão fazer a revolução. Aí eu digo: "Chega, chega, chega! Senão eles saem daqui e derrubam o Fernando Henrique. Calma!". E aí eles se aplaudem, entendeu? Não é que me aplaudam, eles se aplaudem. Eu fazer a minha vida não quer dizer nada. Queria, sei lá. Não me enche o saco! Não me enche o saco! Que mais? Acabou!"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

obra do acaso

Queriam que ele vendesse. No começo eram pedidos disfarçados de sorrisos que vagamente lembravam ordens. Não que o fossem, mas poderiam ser. Esse meio-termo entre algo que é e outro que pode ser, era de fato o que havia de mais aterrador naqueles pedidos. Porque simplesmente não levantavam a cabeça e diziam; “Faça!”. Não, não era apenas uma questão de exercício da autoridade, era o nome da empresa que estava em jogo, sua missão. Disputavam palmo a palmo a alma de seus empregados, portanto mandá-lo fazer não era suficiente, era apenas uma ordem dada a um corpo. Fazê-lo crer que deveria vender, arrancar do seu estômago o mal estar matinal e transformá-lo em adesão e entusiasmo, isso sim era vitória. O troféu era ter a foto mal impressa exposta no mural opaco do corredor, sob o título burlesco de empregado do mês. E afinal, porque ele se negaria a vender?! Bastava tirar o fone do gancho, discar os números e esperar a voz do outro lado responder. Então lhe fazer a oferta, estabelecer o contato inconsciente entre os desejos e seduzi-lo com as palavras corretas. No entanto, isso lhe parecia completamente inacessível, sua voz canhestra emulando o aparelho telefônico cor de gelo. Acreditava na utilização de um método mais objetivo, de uma simplicidade cortês, quase tímida. Mas a corporação, guiada por sua visão estratégica, não possuía o mesmo entendimento e, sobretudo, não chegava aos mesmos resultados. A meta e as condições eram bastante claras: convença a voz a comprar o que lhe é oferecido. Faça como se tudo fosse obra do acaso - a ligação, o ardil, a oferta - trace uma linha entre esses dois pontos até então inexistentes, a mão que dá e a que recebe. Era isso o que os homens de terno lhe pediam quando chegavam a sua mesa com planilhas repletas de números. Ele, muito sem jeito, tentava esconder e ao mesmo tempo revelar seu descontentamento, pois não tinha certeza do que ocorreria se as palavras o desnudassem. O rito de terror velado, os olhares a que seria submetido era algo aquém do que poderia suportar, dessa forma escolhia a formalidade do silêncio resignado. Pegava a folha sem erguer os olhos, fingia preocupação com uma tarefa qualquer e apertava as teclas do computador a esmo, tudo muito cru, muito amador, como se fosse uma criança que teve o brinquedo arrancado das mãos. E eles, os ternos, haviam sido talhados para isso, não ceder, avançar, fazer - homens do verbo de ação. E não cediam um centímetro que fosse e o acuavam entre a mesa cinza claro em forma de “L” e a parede branca e imperfeita minada de rachaduras quase imperceptíveis até o chão. Da pequena sala de café chegavam rumores de que ele seria o escolhido, como alguém portador de uma anomalia, a freqüentar durante uma semana o curso de “como vender mais e melhor”. Após o almoço, quando se encontrava sonâmbulo vagando pelo depósito mal iluminado da firma, considerava objetivamente que vender na verdade era uma tarefa como qualquer outra, até menos trabalhosa e absurda do que etiquetar caixas ou contar estoque. E mesmo que não o fosse, ainda assim era apenas uma tarefa e cabia a ele, na condição de empregado, executa-la. No entanto, algo na palavra vender o desagradava, havia uma espécie de ressonância que a acompanhava como se fosse outra voz, uma impressão difusa de algo que não se manifestava, mas que estava lá presente. E essa outra voz era o principio de tudo que o circundava. Negar-se a vender era o único ato que lhe restava, era como uma baforada de ar fresco num mundo asfixiado, a mão que retinha a tensão da corda. Esse sentimento impreciso mantinha suas convicções vivas e o levava da cama até parada e desta para dentro do vagão fantasma de janelas diminutas e semi-abertas. Imiscuir-se com a massa de estranhos e amá-los com seu mau cheiro e hálito de derrota, senti-los debaterem-se atrás de refúgio e algum conforto. Um dia após o outro.
Seu corpo para frente á grande porta de metal enferrujada e sua retina dilata-se com o reconhecimento do quadrado retangular acinzentado, cortado na vertical por uma pequena saliência desgastada.
- Até quando?
A mente sonolenta ordena a mão que leve o dedo a pressionar a saliência. Logo após ouve-se um som e um recorte se abre na porta amarela carcomida pela ferrugem. A língua de fogo o engole.