segunda-feira, 7 de novembro de 2016

o amor na tarde suada de janeiro

No calor de janeiro
na tarde suada de janeiro, decidi casar com a poesia
porque já não podia mais casar,
porque casei aos dezoito anos,
casei aos vinte e seis anos,
aos trinta e três anos

Minha mãe – pele negra sem rugas, em sabedori e chinelos de dedos – disse:
- Isso não é pra você!

Casei com a poesia ao ouvir a voz de Ginsberg no escritório abarrotado de papéis,
quando Hilda me ofereceu um cigarro.

Casei com a poesia no chão da sala,
na tarde suade de janeiro.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

aos que esquecem de dormir

Protege-me, a insônia
Da violência dos sonhos
No ritmo interno das palavras
Observando as falésias em teus olhos
E a aridez entre os lençóis

A insônia arrasta-me para o deserto
Em seus braços de marinheiro infiel

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

a palavra resgatou o poeta

o homem de todos os dias
agarrou o tempo que ia longe em sua vida,
em seus olhos invencíveis
desenharam-se longos parágrafos

o poema é a ciência
que corre com o vento

sábado, 13 de agosto de 2016

sempre

Seria sempre e a qualquer momento
Assim, sempre uma despedida após a outra
Um navio de pequenas mortes
De náufragos e naufrágios.

As lembranças
Levarei comigo
As insignificantes
Tão finas quanto a areia
Aos punhados, encherei os bolsos.

Aquelas – e não as outras
Plantarei junto à campa
No tumulto silencioso da noite.

sussuro


Era noite, parecia noite
quando o amor
me arremessou ao mar
e o medo fez os copos
caírem afogados.

Portanto, eis aqui
a letra de uma palavra
a voz silenciosa das vozes
a selva úmida enterrada nos ossos.

Parece, ainda parece
que a noite anda sobre o mar
que o vento sopra o sangue das ruas
E o amor, dizem
Arremessará o mundo no fogo.

domingo, 19 de junho de 2016

[poema]

Sentei-me à praça, frente aos seixos, sem fantasias.
Olhar vindo de longe,
As roupas roubadas daqueles que me venceram.
Elaborei um plano no caderno e sentado, ainda sentado,
Troquei-o pela companhia dos pássaros.
Lembro que fazia sol, que havia paredes e bancos,
Lembro de socorrer a pedra, uma árvore,
Lembro de esquecer um punhado de coisas.
Não esqueci a vida, nem os entes vivos,
Não esqueci a identidade do mundo,
O modo caprichoso quando nos olha,
O modo violento quando grita,
Quando grita o mundo seu amor,
Seu amor grande e violento.
Não levantei do banco,
Não troquei meus propósitos.
Mudei como mudam as árvores,
As folhas caindo ao chão,
O trabalho silencioso das raízes.
E consegui ver que nas paradas
As crianças ainda brincam.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O vento é a alma das coisas


Como o olho que vê a si mesmo
Por dentro de um vendaval
Dando as costas.

O olho que viu teu desejo transpirado
Nas mãos de outro
Uma fome com gosto de morte

Olha, olha
O cansaço venceu a aurora
Um incêndio do lado de lá
A água invadindo a cidade

Sonhamos o tempo
Sentados na penumbra da memória
Olhando o silêncio
Enrugar nossas mãos

Meu rosto pensa
o gosto rubro da tua face
Uma última vez
Depois ruminações estéreis
Por fim, o clarão que antecipa o nada

domingo, 27 de março de 2016

Aos homens

Quero encontrar meus amigos
Que moram no tempo,
Ouvir suas vozes insurgentes
No brusco entardecer.

Quero encontrá-los dentro da chuva,
Nas pegadas da cidade que festeja seus mortos,
Cobrir-lhes o rosto com madeira escura
E repousar em seus braços as preces que me ofertaram.

Quero embalar nossos sonhos
Em nuvens brancas e sonolentas,
Reencontrá-los no jardim na memória,
De costas para o vento e as mãos limpas
Com as quais um dia sonharam.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A hiperpoesia
Virá do sangue negro
Das mãos negras
Como um receituário de bênçãos
Bordado em roupa de festa,
Um estandarte da nossa cor
Cujo rosto não se esconde
Do calor infinito de janeiro

domingo, 3 de janeiro de 2016

dois mil anos

Ouvi a música das árvores
deitado na hora mais cinza do ano –
em que homens e trens davam as mãos.
cantando a descoberta do amor,
pano puído sobre um trono de madeira,
entregando-se à velha cidade virgem -
aqui onde caio refém de feitiços,
na negação da colheita,
no grito vazio que me bate o rosto e rói os ossos,
fiel as tuas súplicas,
prostrado em tuas pernas,
na hora mais suave da vida.