quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Velho Abu

Entrevista concedida em 30/01/2005

"Mylton Severiano - Mas você está cumprindo o seu papel.

Antonio Abujamra - Ah! Mas eu não sou padre, cumprir meu papel! Que é isso? Eu faço meu teatro, falo mal. O meu espetáculo agora lá no Rio... a crítica arrebentou, mas o público aplaude de pé e grita "bravos". Faço o público todo gritar. Falo sobre a democracia, digo que a democracia é fashion, tecnológica, maravilhosa, que só numa democracia ocidental fantástica como essa podemos falar como são asquerosos, sujos, canalhas os nossos políticos. E vou arrebentando. Temos que falar qualquer coisa. Temos que falar assim: "Senhores, isso aqui não é Kosovo, este país não é a Bósnia, não é o Paquistão". Será que não é? Mas digo que não é. "Vocês comeram a comida do povo, vocês comeram a música brasileira maravilhosa." Não entendo por que ainda não aconteceu o desastre de uma guerra civil! É porque Deus ainda não nos entendeu. Aí eu digo: "Nós sabemos que todo governo é filho da puta!" Aí entram dois atores e dizem: "Você tem razão, Abujamra, todo governo é filho da puta". "E vocês aí? Vocês também acham?" "Também." "E desse lado aqui?" "Também." E fica um negócio que parece que eles vão fazer a revolução. Aí eu digo: "Chega, chega, chega! Senão eles saem daqui e derrubam o Fernando Henrique. Calma!". E aí eles se aplaudem, entendeu? Não é que me aplaudam, eles se aplaudem. Eu fazer a minha vida não quer dizer nada. Queria, sei lá. Não me enche o saco! Não me enche o saco! Que mais? Acabou!"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

obra do acaso

Queriam que ele vendesse. No começo eram pedidos disfarçados de sorrisos que vagamente lembravam ordens. Não que o fossem, mas poderiam ser. Esse meio-termo entre algo que é e outro que pode ser, era de fato o que havia de mais aterrador naqueles pedidos. Porque simplesmente não levantavam a cabeça e diziam; “Faça!”. Não, não era apenas uma questão de exercício da autoridade, era o nome da empresa que estava em jogo, sua missão. Disputavam palmo a palmo a alma de seus empregados, portanto mandá-lo fazer não era suficiente, era apenas uma ordem dada a um corpo. Fazê-lo crer que deveria vender, arrancar do seu estômago o mal estar matinal e transformá-lo em adesão e entusiasmo, isso sim era vitória. O troféu era ter a foto mal impressa exposta no mural opaco do corredor, sob o título burlesco de empregado do mês. E afinal, porque ele se negaria a vender?! Bastava tirar o fone do gancho, discar os números e esperar a voz do outro lado responder. Então lhe fazer a oferta, estabelecer o contato inconsciente entre os desejos e seduzi-lo com as palavras corretas. No entanto, isso lhe parecia completamente inacessível, sua voz canhestra emulando o aparelho telefônico cor de gelo. Acreditava na utilização de um método mais objetivo, de uma simplicidade cortês, quase tímida. Mas a corporação, guiada por sua visão estratégica, não possuía o mesmo entendimento e, sobretudo, não chegava aos mesmos resultados. A meta e as condições eram bastante claras: convença a voz a comprar o que lhe é oferecido. Faça como se tudo fosse obra do acaso - a ligação, o ardil, a oferta - trace uma linha entre esses dois pontos até então inexistentes, a mão que dá e a que recebe. Era isso o que os homens de terno lhe pediam quando chegavam a sua mesa com planilhas repletas de números. Ele, muito sem jeito, tentava esconder e ao mesmo tempo revelar seu descontentamento, pois não tinha certeza do que ocorreria se as palavras o desnudassem. O rito de terror velado, os olhares a que seria submetido era algo aquém do que poderia suportar, dessa forma escolhia a formalidade do silêncio resignado. Pegava a folha sem erguer os olhos, fingia preocupação com uma tarefa qualquer e apertava as teclas do computador a esmo, tudo muito cru, muito amador, como se fosse uma criança que teve o brinquedo arrancado das mãos. E eles, os ternos, haviam sido talhados para isso, não ceder, avançar, fazer - homens do verbo de ação. E não cediam um centímetro que fosse e o acuavam entre a mesa cinza claro em forma de “L” e a parede branca e imperfeita minada de rachaduras quase imperceptíveis até o chão. Da pequena sala de café chegavam rumores de que ele seria o escolhido, como alguém portador de uma anomalia, a freqüentar durante uma semana o curso de “como vender mais e melhor”. Após o almoço, quando se encontrava sonâmbulo vagando pelo depósito mal iluminado da firma, considerava objetivamente que vender na verdade era uma tarefa como qualquer outra, até menos trabalhosa e absurda do que etiquetar caixas ou contar estoque. E mesmo que não o fosse, ainda assim era apenas uma tarefa e cabia a ele, na condição de empregado, executa-la. No entanto, algo na palavra vender o desagradava, havia uma espécie de ressonância que a acompanhava como se fosse outra voz, uma impressão difusa de algo que não se manifestava, mas que estava lá presente. E essa outra voz era o principio de tudo que o circundava. Negar-se a vender era o único ato que lhe restava, era como uma baforada de ar fresco num mundo asfixiado, a mão que retinha a tensão da corda. Esse sentimento impreciso mantinha suas convicções vivas e o levava da cama até parada e desta para dentro do vagão fantasma de janelas diminutas e semi-abertas. Imiscuir-se com a massa de estranhos e amá-los com seu mau cheiro e hálito de derrota, senti-los debaterem-se atrás de refúgio e algum conforto. Um dia após o outro.
Seu corpo para frente á grande porta de metal enferrujada e sua retina dilata-se com o reconhecimento do quadrado retangular acinzentado, cortado na vertical por uma pequena saliência desgastada.
- Até quando?
A mente sonolenta ordena a mão que leve o dedo a pressionar a saliência. Logo após ouve-se um som e um recorte se abre na porta amarela carcomida pela ferrugem. A língua de fogo o engole.