quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O escuro

No escuro do escuro, tateava objetos, órgãos que se jogavam uns contra os outros. Espera, repetia a voz. As coisas não se repetem. A música sem rima é filha do silêncio. Eu quero o teu desejo - o beijo sussurrado - quero-o solto. E se me repito, desculpe, repete em voz alta: do meu querer, leva um pedaço contigo. A parte que viveu dentro do beijo. Deixa-me descansar ali. Se tudo desaparece na imagem invertida do espelho, derrama em mim teu cheiro. Se não voltares mais, descansa em mim teu cheiro.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Cabeças falantes

Foi de garoto que veio o gosto. No chiqueiro, ao invés de porcos, criava cabeças. Umas cabeças miúdas com vento de nordeste. Cabecinhas de alfinete. Deixava que o sol pegasse na palha seca e com um pouco de música e fogo elas surgiam espontaneamente. Depois de um tempo, já espichado, criava cabeças falantes que serpenteavam palavras enquanto rapinavam quem parasse para escutá-las. Essas ele deixou em contato com a televisão. Todavia, verborrágicas e gatunas, lhe trouxeram problemas em demasia. Por acaso, mas só por acaso, um dia as cabeças comeram os versos de um poema caído no chão. No ato pegaram delírio. Transformadas em esfinges, devoravam leitores delinquentes antipoéticos.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Último vagão

O trem corta o aço
- cada vez mais perto –
num desejo de floresta
sem respiração
onde dançam teus
abraços
apóstolos da vingança
e outros objetos
perdidos em fuga

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

poema menor



Se a boca fala
inventa ou mente, se cospe
de sua natureza mundana,
beijos e outras coisas,
de chofre

há quem não atente:
o amor é um cavalo de pedra
no sol do deserto.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Luz Negra

para P.Maurer e Jorge Mautner


A luz negra que me cegou a máquina
misto de madeira e carne
bebe do meu sangue.

A luz negra que me abraçou espinhos
sutura a mágoa
depois arrasta.


Te persigo
onde não estás, até quando não vens:
“A luz negra dos seus olhos”.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Poços de Petróleo

A cidade, mais do que sonho,
é um pressentimento,
vislumbre de possibilidades
dormitando nos olhos sonâmbulos
dos frentistas.

Fábula do terror tecnológico,
perfume de gasolina.

Bebemos dos postos,
bombas mucamas, amas de leite,
a vida.

Paga com cartão de crédito ou débito,
pois, desconfiados,
ninguém mais aceita cheques.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Redenção

Ver a cidade
(azul que descansa
atrás do arranha-céu)
de parabólicos castelos
nuvens de pensamentos

desejos ativos
confundidos na grama
na pressão dos corpos no orvalho
(gemidos
dispersos)

Os amantes não temem a polícia
nem o fim do mundo.
A cidade agradece.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

madrugadenta

Ele entrou na cozinha e pensou que o fogão era um bom lugar para fazer um café, pois já ia madrugadenta. Porém, antes a água, o filtro, o pó. Colocou a chaleira transbordante em uma das tantas bocas do fogão. Para acendê-lo era necessário um fósforo. Viu a caixa dormitando no balcão, aquela hora ela já não trabalhava muito, e transviu os fósforos lá dentro sem nem precisar abri-la. Eles lá deitados, magrinhos com suas cabeças pesadas, vermelhas. Transviu suas vidas passadas quando ocupavam florestas, quando eram apenas um e tocavam o vento. Dessa época guardavam ainda mistérios. Podiam acender o fogo e notas musicais, coçar um cérebro ou tirar cera do ouvido, apagar a cegueira ou ajudar as musas a encontrarem os poetas. Não reclamavam de nada, nem do tamanho da caixa ou do cheiro de fritura, nem quando acabavam no lixo. Tristeza mesmo era cair na pia e acabar molhado e não poder acender mais nem o bule do café.