sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Se tudo acabasse agora

Gosto de voar, sinto uma emoção inexplicável, talvez aparentada do medo, misto de ansiedade e prazer infantil. Formidável invenção humana, falso ato demiurgo: colocar aquela baleia com asas no ar e sustê-la até alcançar o que me parece ser o infinito. Ícaro também deslumbrou-se com o céu. Seu pai, Dédalo, renomado inventor, foi condenado ao exílio por ter jogado do alto da Acrópole o sobrinho Ácale. Partiu para Creta, reino de Minos, e lá criou o labirinto onde foi aprisionado pelo soberano junto com Ícaro e o Minotauro. Dédalo então fabricou dois pares de asas artificiais com as penas caídas dos pássaros que sobrevoavam o labirinto, colando-as com grossa camada de cera. Alçaram voo deixando o cárcere, contudo Ícaro inebriou-se pelas alturas e se esqueceu da recomendação paterna de não se aproximar em demasia do sol. A cera que fixava as asas derreteu e Ícaro despencou dos céus caindo ao mar. Morreu afogado.

Peguei o voo das 16h com destino à Campinas, viagem rápida, menos de uma hora e meia. Sentei ao lado da pequena escotilha e a deixei aberta. Tarde ensolarada, temperatura amena, algumas nuvens no céu. Toda a preparação feita até o momento da decolagem ameniza minha ansiedade. - Vamos voar! Corremos pela pista acelerando tudo que a máquina pode dar, sacolejando de um modo desengonçado e de repente o zepelim está no ar – penso em Robert Plant, Jimmy Page e John Bonham em ação. Lá do alto as cidades se tornam miniaturas numa maquete e o mar mostra toda sua grandeza e generosidade pela humanidade. Nunca a vida esteve em tão perfeita harmonia quanto agora. E se tudo acabasse aqui, tragado por esse céu tão sereno? Se o avião simplesmente caísse até encontrar o chão? Acima das nuvens, próximo ao sol tal qual Ícaro. Abaixo de mim um campo imenso de nuvens, e não consigo pensar em outra metáfora que não seja algodão, silencioso e reconfortante. E se tudo acabasse agora? Trago involuntariamente a memória o pátio da minha casa, o sorriso de minha mãe e o rosto de meu pai. Vejo também minha esposa e o Precioso, um cachorro que tive quando adolescente. Um dia, já velho e praticamente cego, saiu portão a fora e jamais voltou. Acho que ele não quis morrer e decidiu perder-se. Um arrepio suave me percorre o corpo, é estranho. Sentiria saudades de minha vida, de quem sou e das pessoas que amo. Ao aproximar meu rosto da pequena janela do avião percebo que estou grato. Não tenho medo, ainda não é o momento, e mesmo que o fosse, se tudo acabasse ali mesmo, eu sentiria apenas amor, beijaria a alma daquelas pessoas e descansaria no mar. Então pensaria no Precioso: enfim nos encontraremos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Geografia Política do Afeto Urbano

Acredito que existem coisas que só podem ocorrer em determinado espaço geográfico, como aqui nesta cidade, enquanto outras também só o fazem em sítios específicos de uma estrutura. O espaço de uma cidade não é algo concreto, é um lugar imaginado e afetivo. Só aqui o sol mistura-se de forma tão íntima com o vento gelado que ambos acabam fazendo os parques ao meio-dia se parecem com terras desertas, só aqui o inverno tem a força de nos repeliraproximar. Existe apenas um local em que me permito alugar filmes: a locadora da esquina da Vasco com a Fernandes. Frequento aquele lugar a mais de 15 anos. Calculo que ao longo de minha vida devo ter percorrido mais de trezentos quilômetros pelas calçadas irregulares da Fernandes Vieira, ora pelo lado esquerdo, ora direito, cruzando prédios, olhares, esquinas, pessoas. Comecei alugando fitas em VHS, depois fui migrado para os DVD e hoje não sofro pelas mudanças que estão a caminho. Mais do que pelo fato de ser no Bom Fim, e pelos filmes que encontrava apenas ali - cult movies europeus, raridades do cinema undreground, ou alternativo, ou seja lá como o chamem – o que em realidade me atraía eram as pessoas. Aquele tipo que julgava encontrar no Bom Fim; charmoso, de culto a intelectual, interessante apenas pelo jeito (des)pretensioso de se mover, o ar impetuoso de quem não teme os encontros fortuitos da vida, e isso para mim era o próprio mistério. Meu coração dizia-me que só ali naquelas ruas calcinadas de pegadas eu poderia recebê-los. O Bom Fim era poesia concretizada diante de meus olhos ébrios deslumbrados.

Pelo bairro caminhei por todas as ruas, em todas as direções, sempre tão próximo e distante. As calçadas carregam pedaços meus. Vi os bares se transformarem em lojas, em restaurantes, tomados pouco a pouco pelo vírus da impessoalidade. Vi o altivo e imponente Baltimore ser transformado num estacionamento a céu aberto. Dizem que futuramente será um desses prédios em sintonia com a arquitetura moderna. Cruzei pessoas que já não existem mais e outras que deixei de ver e foram se apagando em mim. Ainda não vi o suficiente. E mais do que sua concretude, ou algo mítico que pudesse ser explicado por algum homem das ciências, um sentimento de pertença se fundiu em minhas memórias distorcendo tudo que lá vivi, borrando meus olhos com as cores de um amor impossível. Se fosse me dada à licença de nascer no Bom Fim, eu a declinaria. Não quero manchá-lo de obviedades, afogá-lo em provincianismo. Meu medo sempre foi o de desmistificá-lo, de não ver mais sua beleza maldição, seu vanguardismo obsoleto, decadênciapogeu. Como amantes nosso medo foi o da destruição, o apagamento a que o tempo nos submete, inclusive daquilo que imaginamos ter vivido. Contudo meus pés têm o vício do retorno e volta e meia me levam a percorrer aquelas mesmas pegadas, como se tivesse por efeito renová-las, pavimento em pedra do meu sentir. E quando questionado porque não pego filmes perto da minha casa, respondo que já estou em casa.