domingo, 21 de outubro de 2012

O ancião

O gosto inequívoco. Voltar aos lugares marcar em mim a presença das coisas. Estacionar no mesmo lugar, percorrer o mesmo trajeto, falar com o homem da rua que guarda carros. Provar do ar gelado que a manhã carrega, estabelecer uma corrente de sentidos, registrar mais do que com os olhos. Minha mente investiga o que se move, de repente, sem aviso. Esse é meu ofício; o registro do que se percebe, mas não se vê.


“Profundamente dentro de si, carregava a escuridão, o refúgio e a calma de uma casa, e acima dela ele próprio se tornara o céu e a floresta em torno e a amplidão e o grande curso d’água que sempre por ali fluía. Que solitário é esse ancião que, mergulhado em si mesmo, se ergue repleto de seiva como uma velha árvore no outono! Ele se tornou profundo; para o seu coração escavou uma profundeza e o batimento dele vem de longe, como do interior de uma montanha .”
Rainer Maria Rilke

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Café Luna


O chão úmido denuncia que choveu há pouco. Faz um calor abafado, um mormaço saído de uma caldeira. Entro no café Luna e penso em escrever um conto que tenha a ver com morte, talvez motivado pelo cheiro ácido e sufocante dos cigarros, ou pela visão que tive dos velhos reunidos ao meio-dia da terça-feira, tomando café e fumando, na contramão de tudo que nos esforçamos para manter. Provavelmente já trabalharam o suficiente e agora desfrutam do merecido ócio da aposentadoria. Porém, a maioria deles não me engana, dândis que jamais sujaram as mãos. Um homem alto de cabeça raspada entra no café, tem por volta de quarenta anos. Magro, camisa xadrez puída nos punhos e sandálias marrom. Dirige-se ao balcão e fala com o garçom. Fica em pé por alguns minutos escolhendo uma mesa. Aparenta demasiada indecisão. Releio o que escrevi até agora e tento, na medida do possível, eliminar os adjetivos. Mantenho os olhos no homem, ele tem o perfil. Introspectivo e apático. Parece alguém que acoberta frustrações diversas e ódio. Pode ser ele, pois, além de mim, é o único sozinho no café, e não fuma. Se no conto houver morte um de nós será o responsável. Entretanto, se eu matá-los não poderei terminar de escrever, de maneira que ele é a opção restante. Matará os velhos, ou um dos velhos. Não posso matar a todos, é pouco verossímil. Quem mataria um punhado de velhos inofensivos sentados num café ao meio-dia de uma terça-feira? E o que é nosso homem? Um psicopata? Um órfão ressentido em busca de vingança? Um desempregado? Olho mais uma vez o algoz sentado debaixo do quadro da Marilyn Monroe; olhar absorto em um lugar remoto, ele mesmo apresentando sinais claros de decadência. Não só o envelhecimento físico, mas uma espécie de falta de vida como se nele ela já estivesse minguando. Mas, assim como ele, não estamos morrendo aos poucos iludidos por nossas vestes de invencíveis, jovens, arrogantes, ébrios? Morrendo pelo supérfluo, por números, metal. O homem contempla a passagem do tempo. O cheiro do café recende no ar. Ainda não estou certo de que ele é capaz do ato. Porém, os anciãos podem mais que nós todos e me olham com reprovação, como se soubessem o que tenho em mente enquanto corro os dedos pelo teclado do notebook. Em seus olhos há algo mais do que apenas censura, um misto de comiseração, raiva e prazer. Nada me pedem, nem suplicam, pois não temem a morte, já ultrapassaram esse dilema. Lá fora o sol brilha com suave intensidade depois de ter se mantido enclausurado entre nuvens durante boa parte da manhã. A claridade se derrama pelo salão da cafeteria. Os velhos voltam a fumar, o vozerio soa animado. O homem termina de beber o café que pedira e com um gesto chama o garçom. Do bolso das calças retira um bloco de notas e escreve algo. Arranca a folha e a entrega para ele. Levanta-se, lança um aceno discreto em minha direção, e vai embora. Tenho o ímpeto de segui-lo, sinto o corpo mover-se involuntariamente. Porém, uma força desconhecida faz com que eu permaneça sentado. Percebo que o garçom sorrateiramente me observa, sei que meu nome está escrito naquele papel, que deveria fugir, mas não o faço, e que algo irá acontecer. Os ançiãos silenciam.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mil Manhãs Semelhantes

Fragmento de um projeto que acalento faz tempo e aos poucos vem tomando forma. Um rascunho de abertura. Obrigado, Daniel.



Mil manhãs semelhantes, cinzas e chuvosas. Senti preguiça, mais do que isso, senti um esmaecimento como se o mundo tivesse parado de respirar, suspenso no mar, flutuando.”

Andando pela beira da praia encontrei Carol. Era um sábado de junho, inicio do mês, e batia um vento gelado de sul. Ninguém no mar, uns poucos pescadores - aposentados que sonharam a vida toda em trocar a cidade pelo litoral,– arriscavam molhar os pés na água turva. Alguns vira-latas corriam de um lado para o outro. Havia chegado a Santa Terezinha naquela manhã. Larguei o carro e fui descansar os olhos no mar. Quando criança imaginava que era possível nadar até lá onde não dá mais vista e escalar o céu. Durante os meses do inverno ia pelo menos uma vez no mês dar uma olhada na casa da praia que um dia fora de meus avós e agora me restara de herança. Julgava a casa e a praia como as únicas coisas verdadeiramente imutáveis no mundo. Claro que haviam sofrido alterações, sobretudo a casa, no entanto era como se estivessem embutidas numa espécie de fenda onde não podiam ser violadas por força externa. Sem dúvida a marca do tempo se fazia presente, porém de forma inescrutável. Meus avós estavam mortos, meus pais separados, meu irmão fora do país e meus tios cada qual vivendo seus problemas, portanto a casa da praia era a minha família.
No verão recebia alguns convidados, eventualmente alguém de Porto Alegre, velhos amigos ali mesmo da praia e Carol. Não a mesma Carol que eu reencontraria em um sábado de junho na beira do mar, mas a mulher que vivia comigo há seis anos e que também se chamava Carol. Talvez uma simples ironia da vida. Conhecemos-nos quando fui ao seu consultório lhe confidenciar minhas inquietações existenciais. Solícita, provavelmente apiedada, abdicou da ética profissional e me estendeu um convite para vê-la participar de um evento, literatura e psicanálise, numa pequena livraria-café no bairro onde eu morava. Coincidência, disse ela. Sendo assim, após o evento, tomamos café, rimos descontraidamente e demos fechamento a noite no sofá do meu apartamento ouvindo “I love you Porgy” na voz de Nina Simone.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Se tudo acabasse agora

Gosto de voar, sinto uma emoção inexplicável, talvez aparentada do medo, misto de ansiedade e prazer infantil. Formidável invenção humana, falso ato demiurgo: colocar aquela baleia com asas no ar e sustê-la até alcançar o que me parece ser o infinito. Ícaro também deslumbrou-se com o céu. Seu pai, Dédalo, renomado inventor, foi condenado ao exílio por ter jogado do alto da Acrópole o sobrinho Ácale. Partiu para Creta, reino de Minos, e lá criou o labirinto onde foi aprisionado pelo soberano junto com Ícaro e o Minotauro. Dédalo então fabricou dois pares de asas artificiais com as penas caídas dos pássaros que sobrevoavam o labirinto, colando-as com grossa camada de cera. Alçaram voo deixando o cárcere, contudo Ícaro inebriou-se pelas alturas e se esqueceu da recomendação paterna de não se aproximar em demasia do sol. A cera que fixava as asas derreteu e Ícaro despencou dos céus caindo ao mar. Morreu afogado.

Peguei o voo das 16h com destino à Campinas, viagem rápida, menos de uma hora e meia. Sentei ao lado da pequena escotilha e a deixei aberta. Tarde ensolarada, temperatura amena, algumas nuvens no céu. Toda a preparação feita até o momento da decolagem ameniza minha ansiedade. - Vamos voar! Corremos pela pista acelerando tudo que a máquina pode dar, sacolejando de um modo desengonçado e de repente o zepelim está no ar – penso em Robert Plant, Jimmy Page e John Bonham em ação. Lá do alto as cidades se tornam miniaturas numa maquete e o mar mostra toda sua grandeza e generosidade pela humanidade. Nunca a vida esteve em tão perfeita harmonia quanto agora. E se tudo acabasse aqui, tragado por esse céu tão sereno? Se o avião simplesmente caísse até encontrar o chão? Acima das nuvens, próximo ao sol tal qual Ícaro. Abaixo de mim um campo imenso de nuvens, e não consigo pensar em outra metáfora que não seja algodão, silencioso e reconfortante. E se tudo acabasse agora? Trago involuntariamente a memória o pátio da minha casa, o sorriso de minha mãe e o rosto de meu pai. Vejo também minha esposa e o Precioso, um cachorro que tive quando adolescente. Um dia, já velho e praticamente cego, saiu portão a fora e jamais voltou. Acho que ele não quis morrer e decidiu perder-se. Um arrepio suave me percorre o corpo, é estranho. Sentiria saudades de minha vida, de quem sou e das pessoas que amo. Ao aproximar meu rosto da pequena janela do avião percebo que estou grato. Não tenho medo, ainda não é o momento, e mesmo que o fosse, se tudo acabasse ali mesmo, eu sentiria apenas amor, beijaria a alma daquelas pessoas e descansaria no mar. Então pensaria no Precioso: enfim nos encontraremos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Geografia Política do Afeto Urbano

Acredito que existem coisas que só podem ocorrer em determinado espaço geográfico, como aqui nesta cidade, enquanto outras também só o fazem em sítios específicos de uma estrutura. O espaço de uma cidade não é algo concreto, é um lugar imaginado e afetivo. Só aqui o sol mistura-se de forma tão íntima com o vento gelado que ambos acabam fazendo os parques ao meio-dia se parecem com terras desertas, só aqui o inverno tem a força de nos repeliraproximar. Existe apenas um local em que me permito alugar filmes: a locadora da esquina da Vasco com a Fernandes. Frequento aquele lugar a mais de 15 anos. Calculo que ao longo de minha vida devo ter percorrido mais de trezentos quilômetros pelas calçadas irregulares da Fernandes Vieira, ora pelo lado esquerdo, ora direito, cruzando prédios, olhares, esquinas, pessoas. Comecei alugando fitas em VHS, depois fui migrado para os DVD e hoje não sofro pelas mudanças que estão a caminho. Mais do que pelo fato de ser no Bom Fim, e pelos filmes que encontrava apenas ali - cult movies europeus, raridades do cinema undreground, ou alternativo, ou seja lá como o chamem – o que em realidade me atraía eram as pessoas. Aquele tipo que julgava encontrar no Bom Fim; charmoso, de culto a intelectual, interessante apenas pelo jeito (des)pretensioso de se mover, o ar impetuoso de quem não teme os encontros fortuitos da vida, e isso para mim era o próprio mistério. Meu coração dizia-me que só ali naquelas ruas calcinadas de pegadas eu poderia recebê-los. O Bom Fim era poesia concretizada diante de meus olhos ébrios deslumbrados.

Pelo bairro caminhei por todas as ruas, em todas as direções, sempre tão próximo e distante. As calçadas carregam pedaços meus. Vi os bares se transformarem em lojas, em restaurantes, tomados pouco a pouco pelo vírus da impessoalidade. Vi o altivo e imponente Baltimore ser transformado num estacionamento a céu aberto. Dizem que futuramente será um desses prédios em sintonia com a arquitetura moderna. Cruzei pessoas que já não existem mais e outras que deixei de ver e foram se apagando em mim. Ainda não vi o suficiente. E mais do que sua concretude, ou algo mítico que pudesse ser explicado por algum homem das ciências, um sentimento de pertença se fundiu em minhas memórias distorcendo tudo que lá vivi, borrando meus olhos com as cores de um amor impossível. Se fosse me dada à licença de nascer no Bom Fim, eu a declinaria. Não quero manchá-lo de obviedades, afogá-lo em provincianismo. Meu medo sempre foi o de desmistificá-lo, de não ver mais sua beleza maldição, seu vanguardismo obsoleto, decadênciapogeu. Como amantes nosso medo foi o da destruição, o apagamento a que o tempo nos submete, inclusive daquilo que imaginamos ter vivido. Contudo meus pés têm o vício do retorno e volta e meia me levam a percorrer aquelas mesmas pegadas, como se tivesse por efeito renová-las, pavimento em pedra do meu sentir. E quando questionado porque não pego filmes perto da minha casa, respondo que já estou em casa.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Prelúdio de Inverno

Só vou à São Leopoldo quando solicitado por algum associado impaciente. O frio lá é persistente e a cerração se demora um pouco mais no ar. Passei a manhã e parte da tarde na cidade. Próximo ao meio-dia parei aleatoriamente em uma esquina para atender o celular, estava procurando um banco, porém mudei de ideia e resolvi almoçar. Quando estou na cidade almoço sempre no mesmo restaurante: lugar agradável, comida farta, e loiras germânicas deslizando por entre as mesas. Contudo, ao atender ao telefone e envolver-me com o interlocutor na conversa, acabei embretando por ruas pelas quais não havia caminhado. Parei numa esquina quando surgiu de um carro uma morena com um punhadinho de moedas nas mãos. Passou as minhas costas em direção ao parquímetro de estacionamento – lá também existem essas abominações – que ficava na esquina do outro lado da rua. Vi através da sua blusa negra, por efeito do sol que despontava, as alças finas do sutiã que se agarrava aos seus ombros. Sedutora, pensei, contraindo o corpo num arrepio de frio. Virei o tronco para vê-la retornar: imperfeita, a pele alva, o corpo miúdo, e no rosto as indeléveis, ainda que delicadas, marcas de expressão - um eufemismo. Toda ela me pareceu de uma delicadeza só possível de ser cultivado no inverno. Havia me agradado e isso normalmente basta. Bateu a porta do carro e saiu em companhia de uma senhora. Cruzou-me dessa vez a frente e seguiu em direção ao outro lado da rua, o mesmo em que estava o parquímetro. Entrou numa casa cinza de amplas janelas abertas. Só então percebi que se tratava de um restaurante. Ainda me reaquecendo ao sol, meditei que todo o evento havia sido uma espécie de aceno que o acaso concedera, portanto devia entrar no restaurante. Em relação a ela sentei lateralmente, porém eu estava de frente e assim podíamos descuidosamente trocar olhares. Talvez, ao me ver parado na esquina, ela tenha imaginado que eu já almoçaria ali mesmo, nem desconfiava que havia me arrastado e que portanto tudo que acontecesse a partir daquele momento era sua responsabilidade. Os olhares confirmavam a série de aleatoriedades que havia nos precedido, podia ler em seu rosto certa perplexidade; porque estávamos naquela esquina e o que nos unira em tão impessoal restaurante. Seus olhos se fixavam nos meus uns segundos além daquele ponto em que podemos suportar qualquer olhar sem sentirmo-nos constrangidos. Mas suportei-os deixando á mostra minha inquietação, sentindo-me terrivelmente vulnerável. Enquanto sorvia de um gole do suco de laranja, pensei nas possibilidades que cada pequeno ato pode nos oferecer como se fosse um corredor iluminado apenas em suas extremidades com inúmeros quartos em ambos os lados. E por trás de cada uma dessas portas tivesse uma destino diferente á minha espera, uma vida dentro da outra, a possibilidade de não ser mais o mesmo, conhecer outro tipo de felicidade ou tristeza. E seu abrisse uma dessas portas? Se me levantasse e fosse até a mesa onde ela estava e lhe desse o número do meu telefone, se dissesse olá, me chama Marcelo, acho que não estamos aqui por acaso, devemos nos conhecer, me chamo Júlio e só entrei nesse restaurante porque há vi antes na rua e uma intuição disse que vamos ficar juntos, me chamo Pedro e teu rosto fez-me perder a razão, me chamo Cícero... . Mas nós tememos o destino, o salto no abismo pode ser confundido com súbita loucura. Nossas vergonhas nos impedem e castigam. O medo de aquele almoço, aquela manhã, o impulso que me levou até ali, talvez pudesse mudar minha vida de uma maneira irreparável. O medo deixa-me sem ter em que agarrar. Voltei a procurá-la mais havia um homem obliterando minha visão, estava em pé conversando com ela e sua acompanhante. Ficou ali até que elas se levantassem e fossem em direção ao caixa. Pude ainda vê-la partindo, os cabelos lisos movendo-se em contato com o vento, o movimento autômato das mãos em segurá-los, as alças do sutiã agarrado aos ombros, descobertos pela claridade intensa. O homem era dono do restaurante, um tipo simpático que me cumprimentou efusivamente na saída. A cerração havia sumido em definitivo revelando um céu azul absoluto. Ainda sentia um pouco de frio, por isso voltei à esquina e me aqueci ao sol.

sábado, 23 de junho de 2012

Rayuela - a voz do criador



Encontrei essa postagem descuidosamente enquanto vagava por entre os vídeos do youtube. O capítulo 2 do Jogo da Amarelinha na voz do mestre Cortázar.


"Demasiado tarde, siempre, porque aunque hiciéramos tantas veces el amor la felicidad tenía que ser otra cosa, algo quizá más triste que esta paz y este placer, un aire como de unicornio o isla, una caída interminable en la inmovilidad."

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O escritor, o monstro e o atleta


Nelson Rodrigues escreveu, ininterruptamente, durante dez anos, crônicas diárias para a coluna ”A vida como ela é” do jornal carioca O Globo. Nelson teve uma relação de devoção com a escrita, indo muito além do profissional. Não sou, talvez nunca seja, um grande leitor da obra rodriguiana, porém não há como não reconhecer a grandiosidade do feito e o talento do homem. Ainda que se questione o formulismo das crônicas, a repetição obsessiva do tema da infidelidade feminina e invariavelmente o desfecho em crime passional, Nelson foi um monstro de fôlego incansável, no mesmo período também escreveu obras fundamentais da dramaturgia brasileira.

Para ser escritor, mesmo que medíocre, deve-se ser um atleta: escrever diariamente e de forma constante. Apesar do pouco talento, persistir. Sou simpático aos operários, esses que exercem suas tarefas como máquinas e, por conseguinte, suas aptidões. São homens de fé. Entretanto, confesso que sou devoto das musas, da crença na inspiração transcendente, quase mediúnica, muito mais por força da preguiça e bagunça da minha personalidade. As musas são preguiçosas, dadas a caprichos e futilidades.

O fato é que tenho mais gosto pela escrita do que talento, e bem menos pela disciplina. Certa paixão me guia por estas linhas. Lembro-me sempre dos medíocres, aqueles de qualidade média e duvidosa, ainda que esforçada - meus pares. Calar-se ou tão somente deixar para a gaveta nossos papéis? Hoje a internet modificou completamente a relação dos escritores com os leitores. Há espaço para todos, excessos, e nada disso tem a ver com talento ou qualidade. Mesmo que o meu leitor imaginário jamais venha a me ler, a possibilidade existe. Escrevo para ser lido, portanto para alguém. E o talento? Imagino Michael Jordan no ar, em câmera lenta, num movimento estranho que mais parecia o oposto, que na verdade ele não estava a se mover, mas simplesmente parado no ar sob olhares estupefatos da platéia. Penso também em Hendrix contorcendo sua Fender Stratocaster com se tivesse feitiço nas mãos. Eles sim, os bem-aventurados, eleitos das musas. Nelson Rodrigues também foi um deles; deixou-nos um legado poderoso, uma obra que fala por si mesma. Foi um incansável, e talentoso. Esse é o abismo.

domingo, 20 de maio de 2012

caderneta

O sol revela a mesa:
papéis amontoados, conformidades,
um dicionário – rio de palavras.

Domingo é tarde,
o limbo após o almoço,
entre o principio e o fim de algo,
vontades acamadas.

Espero o relógio,
penso no desconcerto das horas -
lá vem a luz que transforma a vida.

Amanhã é um dia do passado,
persistente, impassível.
Começa toda segunda,
não acaba nunca.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

um coração doente


Não que odiasse a vida ou o mundo, talvez nem odiasse alguma coisa de verdade. Não era tão ruim assim, havia tido bons momentos, até poderia dizer que eles haviam sido a maioria. Era apenas o tempo que aquilo se prolongava. Um sentimento infatigável de ausência, a falta de algo que até então não soubera decifrar. Algo que estava sempre aquém, fora, que talvez um dia chegasse, que talvez tivesse forma, mas ele não a conhecia, talvez um rosto ou nome. Pensou que era o amor, as mulheres. Depois achou que deveria escolher uma e persistir. Achou que tivesse a ver com o dinheiro e a falta de um trabalho que lhe preenchesse as ambições. Porém, abandonou naturalmente esse pensamento, pois nem um nem outro, dinheiro ou trabalho, lhe moviam as ambições, e também não saberia dizer se as tinha ou quais eram.

Supôs que sofria de uma espécie de dilema adolescente. Fizera tudo o que pudera para amadurecer. Trabalho, graduação, casamento, contas. Ainda não havia tentado um filho. Amigos seus já haviam feito, estavam passando pela experiência e pareciam felizes nas fotos. Imaginou que fosse algo que também pudesse fazer. Sim, podia, mas, ainda assim. Num dia qualquer, numa tarde amena de início de outono, olhando televisão enquanto sua companheira dormia, sentiu que havia algo errado: o sol lá fora, as pessoas na televisão, a respiração compassada da mulher, o quarto em que estavam deitados. Dessa vez não era a falta, mas um mal estar como se o ar estivesse minguando no peito. Deu-se conta que não era a vida, talvez até alguém desejasse de estar no seu lugar; de lhe tomar o emprego, a casa. Não era a vida que estava errada. Chegou à conclusão de que era dono de um coração doente, um órgão infértil que o fazia desapaixonar-se - batia desinteressado, e a esse coração havia entregado sua vida, e outros também o haviam feito sem saber. Contudo, agora já não podia esconder o fato de si mesmo. Deitou-se na cama com os olhos abertos num infinito pensar, o teto ruiu-se aos pedaços e revelou um céu esmaecido.

Comprou um revólver usado de um vizinho policial aposentado, um trinta e oito cano curto todo preto. Sua ideia era dar um tiro no peito, bem no coração, e assim trocá-lo por outro. Porém não queria um transplante, um coração combalido e cheio de más recordações de um infeliz qualquer que tivesse morrido acidentalmente. Precisava ele mesmo construir um novo coração. Pegou uma folha de papel em branco e nela o desenhou com esmero, apesar das linhas tortas. Depois escreveu os nomes das pessoas que amava e das coisas que haviam sido boas. O nome da mãe e dos irmãos, da mulher, do cachorro, de alguns amigos e o de uma banda que gostava desde a adolescência. Lembrou-se da praia onde veraneava quando criança e a incluiu ao lado da avó. Deixou um bom espaço em branco e disse que iria enchê-lo dessa vez.
Sentou-se na única poltrona que havia na sala de estar, de frente para a janela, e com a ponta dos dedos apalpou demoradamente o peito. Sentiu que algo lá dentro se encolhia de maneira que teve certeza de que encontrara a localização exata do coração. Tirou do bolso o coração de papel que havia feito, desdobrou-o com cuidado e o prendeu na camiseta com um alfinete no local em que o outro se encontrava. Encostou o cano do revólver no peito e coração disparou.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A ARMA DE CHUMBO

O pai colocou a pistola de ar comprimido na mão do garoto. “Empunha com as duas mãos, segura firme e aperta o gatilho”. Não era fácil fazer mira com aquele negócio, pesava bastante. O menino concentrou-se, fechou um dos olhos, abriu um pouco as pernas disparou a arma. Escutou apenas o zunido e nem viu onde ou o que o chumbinho atingiu. Vai de novo, disse o pai.

A pistola havia surgido como parte de um plano para afugentar os gatos que circulavam no forro da casa da praia. Casa antiga de tijolo á vista, simples e aconchegante. Herança de família. Desde que se dera por gente lembrava-se de passar os verões lá, e sempre havia algum bicho para espantar, fossem gatos, gambás ou até sapos pelos quais nutria verdadeira aversão. Onde já se viu ter medo de sapo, dizia o pai. A idéia da pistola partira do marido da irmã, sorriu feito um moleque quando a verbalizou. No dia seguinte já estavam de posse da arma.

Antes de atirarem nos gatos precisavam treinar e era isso que estavam a fazer desde o início da tarde. O pai até que era bom, mostrava intimidade no manuseio da pistola, era de se supor que já houvesse atirado antes. Serviu o exército quando jovem, porém nunca possuíra arma de fogo em casa e, no fundo, aquilo não parecia fazer parte do seu temperamento, algo impaciente e ríspido, entretanto sempre racional. O menino recarregou a pistola com chumbinho enquanto o pai ajustava o alvo improvisado, uma garrafa de coca-cola. Sentiu o peso da arma nas mãos e a empunhou cerimoniosamente como se estivesse lidando com o sagrado. Como seria atirar em alguém? O que se passava na cabeça das pessoas que matavam outras? Uma onda de ansiedade lhe correu pelo corpo, os músculos das costas se contraíram. Mesmo que de modo difuso, embaralhado na consciência de sua pouca idade, intuía que a violência lhe conectava a algo maior e anterior a ele, uma espécie de ancestralidade. Mais do que isso. Sim, chegou á conclusão de que poderia matar, já o fizera antes em algum lugar remoto de sua lembrança corpórea. Era um menino, mas se transformaria num homem, e como tal seria dado a matar ou morrer. Dessa forma é que haviam chegado até ali. Colocou o dedo no gatilho e apontou a arma. Surpreendeu-se com a voz do pai: “Aponta essa porra pra lá! Ficou maluco?! Me dá isso aqui”. Arrancou a arma da mão do menino e o empurrou. Em seguida emendou: Agora vem cá, faz como eu te disse. “Empunha com a duas mãos, faz a mira e aperta o gatilho. Vai!”

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Nada Surf

"É, mas quando entra na água
É na primeira braçada
É, ele não vale uma naba
Ele não surfa nada, ele não surfa nada."

(Surfista Calhorda - Os Replicantes)


Eu surfo. Não costumo falar sobre isso com outras pessoas; por exemplo, meus colegas de trabalho, vizinhos, conhecidos. Não saio por aí alardeando. Não é vergonha, ainda que exista flutuando na minha cabeça um certo estereótipo de como os surfistas devam ser ou agir. E também não chego a me considerar da classe. Digo apenas que surfo, caso o assunto venha á tona. Talvez, no fundo, seja vergonha.

Não surfo bem, é isso. Me incluiria na categoria iniciante apesar de já estar nessa há algum tempo. Comecei a surfar lá pelos meus vinte e poucos anos, obviamente tarde, e não consegui evoluir muito, ou pelo menos o tanto que gostaria. Minha família tem casa na praia e toda vez que vou para lá, em especial no verão, aliás, unicamente entre dezembro e fevereiro (talvez isso explique minha pouca evolução), tiro a prancha do saco e a coloca na água. Acredito que todo mundo em Albatroz surfa melhor do que eu, mesmo que ninguém esteja lá para medir habilidades. A questão toda é que não consigo deixar de insistir nesse negócio. Sempre chego fisicamente despreparado e levo alguns dias para recobrar a intimidade com a prancha, o posicionamento, a força da remada. E tem outra: surfo pior ainda de backside (de costas para a parede da onda), então quase que exclusivamente entro só de front nas ondas. Trocando em miúdos; minha habilidade e performance são limitadíssimas, as vezes canhestras, e em certo dias chego a sentir-me constrangido, tomado de vergonha. Incontáveis vezes, enquanto estou na solidão daquele vasto mar, me pergunto por que não desisto de uma vez por todas. Existe algo no surf que é inominável e que está além do que qualquer imagem midiática possa nos fazer crer. Não é sobre performance, sobre a marca das roupas, fotos de ondas perfeitas em praias paradisíacas, ou ainda ondas monstruosas sendo surfadas por homens destemidos. Todas essas coisas fazem parte de um universo especifico muito distante do horizonte cinza escuro do meu Albatroz. Esse algo inominável, quase surreal, que é estar dentro do mar em cima de um bloco flutuante como se navegasse na correnteza imemorial do tempo, diluído numa parte do infinito, é que me faz sempre voltar. Remo com força, o coração aos saltos, para entrar naquela parede líquida e mal posso acreditar que estou em pé deslizando sobre a água como se tudo não passasse de mágica. Esses momentos, esses breves momentos, de redenção e magia.

Todo ano é a mesma coisa. Acho que dessa vez será diferente, que meu corpo urbano e monolítico enfim fará com que eu desista da empreitada. Contudo quando meus olhos recaem sobre o mar uma espécie de desassossego me percorre a alma. Não tem jeito, ainda não será dessa vez.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

2012 agora vai!

Nada caí do céu, afirma a sabedoria popular, também conhecida por senso comum. Tudo que nos acontece está amparado por uma complexa rede de fatos, alternativas e escolhas que tomamos ou que deixamos de tomar. Lendo um excelente livro do Luís Augusto Fischer, Filosofia Mínima – Ler, escrever, ensinar, aprender - escritor, professor e ensaísta pelo qual tenho o maior respeito e admiração, descobri que insisto nesta história de escrever porque não me resta outra alternativa, porque não sei como elaborar minhas experiências se não for por meio da escrita, e porque não consigo viver sem pensar nos significados (ínfimos e aterradores) envolvidos em cada ação que pratico. Tenho essa necessidade de investigar e ressignificar minhas experiências, de colocá-las em algum lugar que não seja o esquecimento ou a dormência. Dessa forma, sentado nesta confortável cadeira de palha na casa da minha família na praia de Albatroz, penso que se cheguei aqui não foi por acaso, mas porque escolhi e porque uma série de fatores conspirou favoravelmente para que isso acontecesse. Contudo o objetivo não é escrever sobre as graças, ou infortúnios, porque os dois coexistem lado a lado sempre, de estar na praia enquanto milhares de pessoas não estão, mas pensar um pouco no ano que finda, e por mais que vivamos num presente incessante, é mais um ciclo que se encerra. Então, o que me trouxe até aqui? Vivo com certa angústia, umas tantas incertezas; minha vida segue em retas paralelas que não se comunicam, temo que jamais venham a fazê-lo. Uma delas é das coisas como elas são; o trabalho, a mulher, os amigos, o local onde vivo, a cidade. É a estrada concreta. A outra é das minhas aspirações, das fantasias, os sonhos e o tempo que sempre me parece inesgotável. Parece óbvio que com a idade que tenho já deveria estar mais esperto, um pouco mais maduro, e já capaz de reconhecer a discrepância que há entre o real e o suposto. Deveria me frustrar menos. Confesso que peco ás vezes pela autopiedade, pelo excesso de melindre e falta de tenacidade para viver nos dias de hoje, na sociedade líquida pós-moderna capitalista, seja lá o que isso signifique. Também não gosto de culpar a sociedade pelos meus fracassos, faz com que eu me sinta um chorão de barriga cheia. 2011 foi um bom ano? Digo que sim. Não acredito e não gosto destes escritos de auto-ajuda, sabedoria rasa feita para tapar buraco. Acho chato e pretensioso. Gosto mesmo é de reclamar, do desespero, e a partir disso encontro uma saída, reelaboro um caminho, repenso e sigo em frente. Por isso o ano de 2011 foi excelente. Eu queria mais, óbvio. Queria a ausência de problemas, fazer apenas o que eu gosto e ainda ser pago para isso, um mundo melhor, uma sociedade mais justa, a extinção do sertanejo universitário e por aí vai. Todas essas previsões de ano novo e retrospectivas de fim de ano são falsas. Sobrevivemos, e com certo esforço fizemos até algo mais, sonhamos também. Pretendia estender mais um pouco essa conversa mas faz um baita sol lá fora, o verão me chama. Feliz 2012!