sexta-feira, 28 de março de 2014

Os Indesejados

Creio que foi numa terça-feira. O dia estava quente, sol de arder a pele. Não conseguia me concentrar na reunião, o barulho da máquina de cortar grama ocupava todo o espaço. As reuniões da escola eram um massacre. Porque havia me tornado professor? Poderia ter sido médico, assaltante de banco, zelador. A memória não deixava recordar. Não parecia terça-feira, nem que estávamos na escola, nem que fosse grama sendo cortada. A semana começava ali naquela reunião batendo ferro com violência. Era a violência do dia. Os indesejados estavam por todos os lados, proliferando em abundância pelas cercanias do bairro, cuidando carros, pedindo cigarros. Restava-me apenas entregar a raiva e o desgosto às horas.

Desci para tomar um café e encontrei a mesa vazia. Farelos indicavam que eu havia chegado tarde. Sobrara um pouco de café preto. Os demais professores se acotovelavam na salinha contigua ao saguão, a única com ar condicionado. A reunião terminara, então fui pegar o carro na praça em frente à escola. O guardador de carro me chamou de irmão e pediu um trocado. Já o conhecia, talvez até soubesse seu nome, creio que se referia assim a todos: irmão. Não tinha importância. Disse de forma ríspida, porém, acredito que sem raiva, que não era seu irmão. O que teria mudado se eu simplesmente assentisse, ou, talvez, para reforçar aquilo que ofereciam a ele, tivesse apenas ignorado? Neguei também o dinheiro e bati a porta do carro. Em seguida ouvi um murmúrio, um ruminar de palavras: vou te enfiar a faca no bucho. Não sei ao certo. Deduzi que fosse algo como um dia te enfio a faca no bucho. Uma ameaça. Na hora tive mais raiva do que temor. Poderia ter saído do carro e lhe dado umas bofetadas. Era menor do que eu e magro do uso de drogas. Um alucinado. Mais tarde diria a mim mesmo que não havia lhe negado o direito de me chamar de irmão pelo simples fato de sermos negros. Será que ele havia me dito aquilo por isso? Por uma solidariedade de raça? Na hora nada me veio além de um desgosto misturado com impaciência, com um estar cheio disso, dos intrusos, dos que cobram e fingem estar pedindo. Entretanto, achava que comigo sua simpatia era mais forçada porque deveria parecer natural a existência de um laço entre nós. Bati a porta do carro. Quem ele pensava que era para me ameaçar?

Fui até o shopping almoçar ainda que não gostasse da impessoalidade luminosa do lugar. Todavia, por preguiça de estacionar, caminhar, procurar outro lugar para tomar café e ir ao banco, acabava indo lá. Essa era a armadilha idiota do shopping: oferecer comodidade aos acomodados da vida. Encontrei Camila. Não estava com rugas e papadas horrendas como se tivesse passado os anos bebendo e fumando por noites a fio. Naturalmente lhe faltava na tez o brilho característico da juventude, entretanto e, sobretudo, continuava linda. Fazia mais de quinze anos que não a via. Trazia na cabeça a lembrança do nosso último encontro: ela me abandonara. Fiquei sozinho no restaurante. Não voltou mais. Era ridículo pensar naquilo, contudo, de fato era a única coisa que restara dela. Cumprimentou-me com pouco entusiasmo, como se não estivesse conseguindo atribuir um significado a minha figura. Tenho certeza de que também pensou única e exclusivamente naquela noite. Dissemo-nos as coisas habituais: que quase não havíamos mudado, que fazia tempo, ah! a vida. Enfim, tudo bem. Ela tinha um filho. Não sou casado. Não tenho filhos. Vamos tomar um café? Tenho que pegar o Guilherme daqui a pouco. Vamos nos encontrar outra vez. Eu preciso te dizer um negócio: Vamos pra cama de novo. Eu não esqueci, só mais uma vez. Isso não tem importância. Vamos pra cama. Nós éramos jovens. Tchau. Me liga. Não. Um dia desses, quem sabe.

Camila partiu de olhos semicerrados após ter me negado pela segunda vez. Tudo foi tão rápido. Na cafeteria ela pediu um espresso enquanto tomei um pingado; de relevante dissemos pouco. Não havia uma pergunta formulada, concreta, que fosse traduzível em palavras. Ela não ia encontrar ninguém, continuava fútil como sempre fora. Comprar lhe emprestaria a falsa impressão de saciedade. É o que todos fazemos. Podia comprar qualquer coisa e aquilo lhe ocuparia um tempo de vida, meia hora, talvez duas ou mais se considerasse também o quanto gastaria até chegar em casa. Pegaria nas mãos o que havia comprado, fosse roupa, um livro ou bolsa, e o contemplaria com uma espécie de súplica desencantada e inútil. Depois o guardaria no território das coisas a espera da oportunidade de serem utilizadas.

Creio que devia ter feito mais alguma coisa antes de voltar para casa, talvez mais uma reunião em outra escola. Uma vez em casa, fechei todas as janelas e deitei no tapete da sala. Nunca fui nenhum fã de Belchior, porém a letra de uma música veio á cabeça. Tentei cantarolar: “se você me perguntar... de olhos abertos eu lhe direi”. Talvez o mendigo fosse me matar dali a dois. O mendigo irmão. “Amigo, eu me desesperava”.

Pela manhã, quando acordei, não pensei em que dia era e nem no que deveria fazer. Peguei o carro e rodei mais de uma hora, talvez muito mais, fazendo um esforço para recordar o lugar. Tinha certeza que podia encontrá-lo apenas com o que guardava na memória. Enfim estacionei o carro em frente a uma casa geriátrica. Ela era grande e antiga, repleta de árvores ao redor. Tinha um aspecto quase bondoso. Entrei na casa e na recepção perguntei por Elizabete. Chamaram uma mulher que me levou até a varanda onde duas senhoras conversavam. No breve caminho que conduzia até lá me questionei se ela me reconheceria, ou ao contrário, se eu ainda era capaz de reconhecê-la. Enquanto estivemos juntos, ambas sorriram o riso da irrealidade e falaram palavras desencontradas. Aceitaram minha presença de bom grado. Na saída prometi retornar, mas elas não se importaram. Pensei que devia existir outra coisa, uma outra vida que até então se mostrara insondável. O guardador de carros viveu mais alguns anos até morrer de overdose, porém, antes, me enfiou a faca na barriga três vezes até ver meu corpo se debater no chão.

Nenhum comentário: