sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sweet Jane, Ventura

Acredito que, de alguma forma não explicada, atraio os mendigos de rua, sobretudo quando estou de fones ouvindo Lou Reed cantar Sweet Jane. Talvez seja ele que os atraía, e não eu.

Hoje tinha um jogado no chão como que engolido pela calçada, dormindo com a boca entreaberta. Na verdade mendigos são inconfundíveis, não há como compará-los com alguma outra coisa, não permitem metáforas. Não consigo vê-los como um “pacote jogado no chão”. Um pacote de gente.

A boca entreaberta, a barba suja, as calças rotas marcada por uma rodela de urina. Era tão somente 13h45min e o sol estava no ponto mais alto do céu, ardendo uma promessa de verão inclemente. Carros movendo-se aos solavancos pressionados pelos motoqueiros soldados kamikazes, funcionários retornando do almoço, e o mendigo adormecido no mármore quente. Eu poderia escrever que fui o único a parar por mais de 10 segundos para olhá-lo e ver que ele tinha cabelos compridos e grisalhos, que vestia uma camiseta vermelha, mas eu estaria sendo tremendamente hipócrita. O mendigo continuou lá, e eu estou aqui. Não o levei para casa, não lhe dei esmola nem um cigarro. Ele nada me pediu, apenas estava ali na calçada, dormindo como se o mundo ao redor não fizesse parte do seu sonho. Outras pessoas também paravam por alguns instantes para observá-lo como que a verificar se era mesmo uma pessoa deitada no chão, ou se, talvez, não era uma dessas intervenções artísticas.

Da onde eles vem?
Homens que brotam do útero da cidade, ou que talvez dêem vida a si mesmo como homens-monstros, uma espécie distorcida de Frankenstein.
Na volta ele já não estava mais lá, ou foi tragado pela calçada ou cozido pelo sol. Lembrei que já havia escrito um conto sobre um mendigo. Dei-lhe o nome de Ventura e coloquei o Lou Reed pra rodar novamente.

“Algumas pessoas gostam de sair pra dançar
E outras têm que trabalhar, observe-me agora!
E há sempre algumas mães malévolas
Bem, elas lhe dirão que tudo isso é apenas sujeira
Você sabe que, as mulheres, nunca desmaiam de verdade
E aqueles vilões sempre piscam os olhos, woo!
E você sabe, as crianças são as únicas que ficam vermelhas!
E que a vida é só pra morrer!
E todos que tiveram um coração
Eles não se virariam e o quebrariam
E qualquer um que já fez um papel
Não se viraria e o odiaria
Sweet Jane! “

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Último Cigarro

Ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir. Dei uma longa tragada, a brasa ardia preguiçosa no escuro. O último cigarro.

Há quem diga que dar a palavra é o mesmo que firmar um compromisso. Eu não. Conheci Dora Sarlo num bingo no centro da cidade numa tarde agradável de outono. Era uma senhora atraente para sua idade, viúva, dada a futilidades e viciada em jogos. O marido foi um grande exportador do ramo calçadista. Morreu com dois tiros na cabeça deixando toda a fortuna para a mulher. Não tinham filhos. Ela dizia que o velho era mesquinho, teve o que mereceu. O crime nunca foi solucionado. Mas naquela tarde detalhes dessa natureza não me interessavam. O bingo era um lugar pouco melhor do que a sinuca que ficava em frente a pensão e menos divertido que um bordel da Farrapos. Não esperava encontrar lá mulheres requintadas, cheias de grana, do tipo que viajam pela Europa com o amante. Quando me aproximei de Dora queria apenas diversão. Ela estava faceira e já bastante embriagada, dava olhares lascivos para qualquer um que a encarasse. Não foi preciso mais do que um sorriso para sentar-me ao seu lado. Disse que a sua risada era gostosa, ela respondeu que eu devia ser um cafajeste. Afirmei que sim; que ela estava correta e se me desse a oportunidade eu lhe mostraria o quão cafajeste eu poderia ser. Riu alto - ela gostava de pessoas vulgares. Gostei de você, disse. Fomos para sua casa na Zona Sul. Fiquei impressionado com a entrada do casarão, vi que ela não era pouca coisa.

Foi fácil enredá-la, dizer o que ela queria ouvir, dar um tanto de carinho,atenção. Dentro de pouquíssimo tempo eu já tinha acesso total a casa. Dormia e comia lá, dirigia o carro como se fosse o dono, via futebol jogado no sofá da sala. Depois ela começou a me vestir, comprava desde as cuecas até os sapatos. Nem precisei esconder que de fato era um aproveitador e vivia disso, pediu apenas que eu desse a minha palavra de que não a trairia e tudo que ela tinha também poderia ser meu. “Dou minha palavra”. Cruzei os dedos e beijei-os. Ela sorriu como jamais eu voltaria a ver. Surpreendia-me que uma mulher como ela, que já tinha visto de tudo na vida, ainda pudesse acreditar em promessas.

A vida nos apresenta poucos lances de sorte. Tinha plena consciência disso, estava diante dos meus olhos, podia tocá-lo. Sem filhos ou outros herdeiros, ou mesmo parentes que se opusessem a nossa união, passamos a morar juntos. Agora eu tinha carros, dinheiro a vontade, roupas sempre novas. Dora não se importava com minhas escapadelas noturnas, concordava que eu era jovem e precisava de alguma diversão além dela. O único limite intransponível, sob hipótese alguma, era ter uma amante que vivesse à custa do dinheiro que ela me dava. Não suportava a idéia desse tipo de traição, isso não era apenas desrespeitá-la, era tomá-la por imbecil. É mau negócio uma sanguessuga sustentar outra. Andava com mulheres diferentes, não mantinha vínculo com ninguém, não dava nem o número do telefone.

De fato o jogo parecia ganho, a vida boa acabara por me amolecer e depois de quase um ano sentia-me imensamente frustrado. Foi aí que surgiu Maíra, a empregadinha da casa que dormia lá durante a semana. Era uma moça jovem de pele morena queimada do sol, pernas torneadas escondidas atrás da saia e do avental, olhar acesso, atento a tudo que acontecia. Minha ocupação, então, passou a ser persegui-la pelos cômodos da casa. Logo ela entendeu a natureza do jogo e o aceitou. Tornei-me obcecado pela garota, pelo modo como me repelia e depois desejava, pelo cheiro acre do seu corpo e pelas marcas que ela em mim deixava. Passávamos os dias envolvidos nessa disputa, furtivamente, pelos cantos da casa, em qualquer horário, fosse madrugada ou cedo da manhã. Não sei se Dora desconfiava de algo, sei que quase não nos falávamos mais e tê-la ao meu lado era enfadonho e triste. Certa noite pediu que eu fosse ao banco sacar um dinheiro e depois a farmácia comprar um de seus tantos remédios. Na volta eu teria uma surpresa. Em segundos sai do torpor em que me encontrava e tornei-me lúcido de todos os vestígios que eu e Maíra vínhamos deixando há semanas.

Quando voltei, Dora estava maravilhosamente vestida, a mesa de jantar posta e sobre ela uma caixa embrulhada para presente. Sorri um tanto sem jeito e perguntei o que estávamos celebrando. Ela sorriu também, maneando a cabeça. Abra, disse, apontando para o embrulho. Abri e dentro da caixa havia um pequeno estojo marrom de alianças. Retirei-o de lá fingindo surpresa. Dora pegou o estojo, abriu a tampa, segurou uma das alianças e a colocou no meu dedo. Fiz o mesmo com ela, e, de mãos entrelaçadas, disse que me amava e nos declarou marido e mulher como se fosse o padre. Beijou-me a boca com languidez incomum. O jantar foi servido por Maíra que me olhava de soslaio com ar de deboche. Bebemos um vinho excelente, demos boas risadas, fizemos planos de viagens e continuamos bebendo. Minha apreensão arrefeceu.

Acordei com uma ressaca descomunal, sentindo muito frio e com a boca seca. A cama estava úmida, parecia molhada. Olhei para o lençol manchado de vermelho e senti no corpo um liquido espesso e pegajoso. Saltei da cama e vi Maíra deitado ao lado, nua, coberta de sangue e com a garganta atorada, quase separada do pescoço. Senti vertigem, tive vontade de gritar e chorar também, mas não o fiz. Rastejei até o banheiro e comecei a me lavar na pia, só depois atinei a ir para debaixo do chuveiro. Enquanto limpava o sangue fui colocando ordem nos pensamentos. Deveria ter ido embora quando tive oportunidade. Dora armou uma cilada. Deixou apenas Maíra de empregada na casa e de certo colocou algo na bebida. Pela profundidade do corte na garganta um homem deve tê-lo feito. O próximo passo é me incriminar, a polícia já deve estar a caminho. Vesti as primeiras peças de roupa que encontrei e sai sem levar nada além da imagem da menina degolada que um dia fora Maíra. Confuso, acabei escondido num hotel do centro da cidade. O crime ganhou as manchetes dos jornais e Dora estava desaparecida. Pensei que ela tinha me deixado lá com o corpo para que a polícia nos encontrasse, depois viria a público corroborar os fatos e livrar seu nome. Mas não o fez, continuava sumida e com isso passaram a acreditar que eu havia matado as duas. Mudei de hotel, fui parar nas imediações da Rodoviária. Sair da cidade era a melhor opção, talvez a única, no entanto não tive coragem de fazê-lo. Ser preso era uma questão de tempo. Um dia, ao despertar, encontrei uma carta no chão próximo a porta. Dentro do envelope um cartão branco trazia escrito com esmero: “até que a morte os separe”. Não estava assinado. Creio que de certa forma pude compreender Dora. Esperei. Então ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

No Deserto




“Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõe-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa ,a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, “leves”, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não agüentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto.”

No teu Deserto
Miguel Sousa Tavares

sábado, 2 de outubro de 2010

Ventura

Vi a cena de relance: o homem de pés descalços, bermuda colorida e moletom roto, cor de sujeira, atravessa a rua impassível desafiando os carros em alta velocidade. Máquinas possantes conduzidas por gente apressada. Os carros param como se em reconhecimento a divindade que lhes cruza o caminho. O homem alcança a calçada do outro lado e segue num trote majestoso até sumir da minha vista.

Apesar da brevidade do encontro o reconheci. Dizem que ele já teve muito dinheiro, que foi dono de empresa ou advogado, que já dirigiu máquinas tão poderosas quanto as que acabara de intimidar, que já teve conta em banco – e só gerentes o recebiam, que tinha mulher e filhos. Um dia desci para fumar um cigarro na calçada do prédio onde trabalho e vi o homem todo desgrenhado fuçando no lixo. Quando me viu, veio em minha direção trançando os pés como se bailasse, ao invés de caminhar, e pediu um cigarro, porém, não o fez com palavras, mas levando os dedos aos lábios e soltando no ar uma fumaça inexistente. Não hesitei, dei-lhe o cigarro e o acendi. Ele me olhou com a rigidez obsessiva do destempero e foi se afastando sinuosamente como um caranguejo sem dar-me as costas. O porteiro veio me dizer aquelas coisas que eu disse antes, que ele teve dinheiro, um empresário, talvez advogado, que foi casado. Disse também que havia escutado por aí que ele ficou desse jeito por causa da cachaça, ou das drogas, ou ambos, que foi abandonado pela mulher, o filho pequeno morreu num acidente de carro. A verdade ninguém sabe. Seguido estava por ali dançando, tergiversando com sacos de lixo. Foi a primeira vez que tive contato com ele.

Chamei-o de Ventura, o mendigo, o Baryshnikov da calçada. Tinha unhas cumpridas e pretas de tão encardidas, uma barba rala que teimava em não crescer e a pele bem morena como que queimada do sol. Os pés sempre descalços. Não sei como resistia ao inverno. O porteiro disse-me que ele também já havia se questionado a mesma coisa inúmeras vezes, até que vasculhou a memória e percebeu que jamais o vira durante o inverno, apenas no verão. Deduzimos que ele abandonava a cidade com a chegada do frio e retornava junto com o calor. Provavelmente se escondia do inverno em alguma praia do Caribe. Ventura, o mendigo caribenho. As vezes aparecia com um copo de cachaça, nunca garrafas, e como um possesso executava passos de Tap Dance, batendo o solado do pés contra o chão. E por mais que tentássemos, não trocava palavra alguma conosco. Fumava os cigarros que eu lhe dava, fuçava no lixo e dançava. Nada mais.

Um dia Ventura sumiu e nunca mais apareceu. Simples assim. O porteiro disse que é exatamente isso que acontece aos mendigos. “Simples assim”. Até que o vi ressurgir atravessando a rua. Logo pensei que estava vendo-o pela ultima vez, que eu deveria ter parado o carro e ido até lá lhe oferecer um cigarro, confessar que eu imaginava – sim, era isso que eu pensava enquanto sorria vendo-o dançar - que de alguma forma, não saberia dizer como, poderia ajudá-lo a mudar de vida. Tentei descobrir como ele havia acabado nas ruas catando lixo, mas ele nada falava, creio que nem entendia. Apenas olhava-nos com seu rosto de mistério, com seu furor obsessivo de bailarino. Queria que ele partilhasse a sua dor comigo, mas não havia tristeza em seu olhar, nem alegria, nada. Será que Ventura escolhera aquela vida? Ao vê-lo cruzar a rua como um transatlântico soçobrando ao mar, me questionei se não estávamos todos vivendo o reverso do mundo, assim como ele, ou, talvez, Ventura tenha acreditado que vivia seu próprio sonho, contudo não entendera que a vida é o sonho de Deus.

Ventura foi parar nas ruas após entrar em surto com a morte de sua família num acidente de automóvel. Perambulou durante anos até ser reconhecido por um antigo fã dos tempos em que brilhava no palco dos Teatros. Ele o tirou das ruas, deu-lhe banho, comida e uma cama limpa. Nessa noite Ventura imaginou que estava de volta ao tablado, lugar do qual seu espírito jamais se afastara. Dançou novamente, leve e harmonioso como a bruma da manhã. O meu sonho terminaria assim e nele eu dançaria na rua num dia de chuva, tal qual Gene Kelly.