sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Magnum Espetacular

A visão do circo prendeu-lhe a atenção. A lona branca encardida da fuligem, as bandeirolas esfarrapadas dependuradas no mastro, o acende-apaga intermitente das lâmpadas no letreiro. Não conseguiu ler o que estava escrito ou talvez o tenha feito, mas não reteve o nome na memória, impressionado que ficou com a sujeira da lona. Circo de pobre. Não por acaso estava acomodado na entrada de uma Vila. Se por fora é assim, imagina o que são os palhaços, pensou com desdém e certo rancor. Logo em seguida envergonhou-se do que acabara de pensar e sentiu raiva de si mesmo, do circo e dos pobres.

Fechou o caderno vermelho, guardou-o dentro da pasta marrom e levantou-se da mesa aflito, não sem antes olhar para os estudantes absortos em seus livros. No mínimo duas vezes por semana ia até a sala de estudos da Faculdade que ficava próximo ao seu trabalho para escrever. Sentia-se mais concentrado ali, longe dos barulhos que a mulher fazia no pequeno apartamento. Perturbava-o imensamente o som da tevê, os diálogos insossos dos atores, o intervalo comercial. Ela então o chamava, pedia que viesse até a cama. Detestava esses momentos mais do que a novela. Resolvera escrever para contar coisas que jamais pudera falar.

O circo permanecia lá instalado na avenida, próximo a faixa de segurança, em frente à Vilinha. Ou será que sempre esteve ali? É possível. Talvez estivesse lá há tanto tempo que ninguém mais o notava. O Magum Espetacular adormecido. Quando contou á esposa que iria fazer uma oficina de criação literária ela o olhou com indiferença, curiosidade e reprovação, tudo no mesmo olhar, mas nada disse. O que lhe causou uma apreensão insuportável que o impeliu a falar como se estivesse a justificar-se perante sua mãe. A mulher manteve o silêncio balançando a cabeça uma vez que outra e por fim deixou-o falando sozinho. E o assunto morreu ali mesmo.

Numa tabuleta negra, escrito a giz, lia-se o seguinte: o circo da Espanha. Que piada, pensou o homem após passar pela frente da tenda pela vigésima vez em dez dias. Ficava a caminho do seu trabalho, próximo a faculdade. O grande Magnum andrajoso, abandonado a própria sorte. E nesses dez dias jamais viu alguém entrar ou sair dele. Nem um funcionário na bilheteria ou perto dos trailers. Não via sequer outra pessoa nos seus arredores que não fosse ele mesmo a espreitá-lo, parado do outro lado da avenida.

Talvez estivesse pegando o jeito de escrever ou encontrando o fio narrativo da estória. Gostava tanto de ler que um dia imaginou que pudesse também escrever. Burilava o texto do conto com esmero. Como fora sugerido, andava com uma caderneta a tira colo, a cor era vermelha, anotando os detalhes do “Magnum Espetacular”, o grande circo da Espanha. Da pequena janela da sala onde trabalhava podia vê-lo. Não se lembrava do momento em que o alojaram lá. Tinha a sensação estranha de que ele sempre estivera ali. Não sabia como explicar. Viu as bandeirolas solitárias e o pisca-pisca das lâmpadas do letreiro, chamou-lhe a atenção a aparência suja e desolada. As luzes acessas desde a manhã até a noite sem que aparecesse viva alma. Dia após dia. Até que viu um homem parado do outro lado da avenida, mirando o circo com a mão sob os olhos para protegê-los do lusco-fusco do fim de tarde. Teve a idéia de escrever o conto. E agora passava todas as horas do seu dia pensando nele.

O homem atravessou a faixa num passo curto sem olhar para os lados. Entrou sem hesitar no recorte negro aberto na lona encardida que um dia fora branco. Permaneci na parada de ônibus com o coração apertado esperando que ele saísse de lá em pouco tempo ou que talvez mais alguém entrasse, ou que alguma coisa acontecesse. As luzes apagaram-se. Corri em direção ao circo ouvindo atrás de mim o alarido das buzinas. Guiava-me pelas bandeirolas que se aproximavam com velocidade, esfarrapadas no céu. Passei pela bilheteria vazia e entrei no breu da tenda. Havia um único facho de luz que iluminava dois palhaços que se batiam com luvas de boxe no picadeiro. Na arquibancada, á minha esquerda, um homem escrevia numa caderneta vermelha e a deixou de lado para assistir o espetáculo.

Fechou a caderneta, pegou o resto das coisas e deixou a sala de estudos. Ao invés de aguardar o ônibus abandonou-se ao impulso que o levou até a frente do circo, do outro lado da avenida. Fitou a tenda enorme, toda encardida, por breves minutos que pareceram intermináveis. Atravessou a rua sem olhar para os lados como se deslizasse no asfalto ainda quente do sol. Não havia ninguém na bilheteria. Distinguiu lá no fundo um facho de luz. Antes de entrar virou-se para trás e avistou um homem que do outro lado da avenida olhava em sua direção com a mão sob os olhos, protegendo-os do lusco-fusco do fim de tarde.