quarta-feira, 19 de maio de 2010

Um blues para Morgan

Abri o jornal e li numa nota no canto inferior da página, quase no rodapé, que Peter tocaria à noite no Village. Garoto estúpido, não aproveitou nada do que eu havia lhe ensinado. De volta ao berço dos fracassados. O sujeito até podia ter algum talento, mas se ficasse muito tempo por lá acabava liquidado. A decisão veio num arroubo logo após de ter lido seu nome. É hoje. Larguei o jornal num canto.

Quando o conheci ele não era nem uma promessa, era apenas um vagabundo de fala mansa e olhar melancólico. Tinha o raro dom de tirar as músicas de ouvido logo nas primeiras audições. Não sabia ler uma nota sequer, mas conseguia reproduzir tudo que ouvisse com extrema fidelidade. Podia imitar qualquer um e este na verdade era seu talento. Copiava de seus ídolos até os trejeitos, a embocadura no instrumento, a maneira de segurar o cigarro e levá-lo á boca. No entanto, ninguém lhe dava credibilidade alguma, nem para fazer show de aquecimento. Já o meu caso era o contrário. Eu não saía do Village porque não era apradinhado por nenhum figurão, não tinha um rostinho bonito e não perdia meu tempo tocando música dos outros. Mas não era bem isso o que o público queria. Um dia, enquanto passávamos o som, ouvi o sopro de um trompete que mais parecia um lamento, vindo lá do fundo do bar. Vi o garoto sentado na cadeira, as costas arqueadas, tocando de olhos fechados. Parecia o Chet Baker com a franja caída sob o rosto. Na hora entendi o que me faltava para sair do Village. Resolvi me aproximar.
- Tem que parar de tomar pico, garoto!
Ele sorriu.
- Quer um trago?
Também não respondeu. Estava tão chapado que mal podia com o trompete.
- Vê se dá uma melhorada e passa aqui mais tarde para nos ver tocar.
Assentiu com a cabeça como se ela fosse de chumbo. Malditos viciados! Seria fácil convencê-lo a tocar minhas músicas, o problema todo era o que fazer para mantê-lo sóbrio. Mesmo assim estava decidido a arriscar. Peter apareceu no show e ficou feliz que alguém lhe desse atenção. Depois de bebermos bastante com os rapazes da banda, pedi que tocasse para nós “Stella by Starlight”. Ele fez então sua mise en scène e tocou como se fosse o próprio Baker. Todos aplaudiram. Dei-lhe uns tapas nas costas e com um gesto pedi que se aproximasse.
- Isso é pouco garoto, você precisa ir além. Ninguém vai te respeitar desse jeito.
Peter me olhou com um misto de raiva e constrangimento. Devolvi com uma piscadela e sorriso de deboche. Seguimos noite adentro até encontrar o sol nos aguardando na saída. Antes de nos despedirmos coloquei meu endereço no bolso da sua camisa e disse para me procurar quando curasse a bebedeira. Uma semana depois ele apareceu á minha porta com o case do trompete debaixo do braço, sua aparência estava boa. Deixe que entrasse e mostrei-me solícito. Ouvi toda sua história, as proezas sexuais, sua devoção pela música e ambições. E essa foi a deixa para que eu entrasse acenando com a mágica de fazer dinheiro. Seus olhos brilharam ao ouvi-la. Ele tocaria músicas minhas como se fossem composições de sua autoria. Ganharia crédito como artista e fama. Depois, sem que ele antes suspeitasse, eu surgiria cobrando meus direitos e revelando-me como o verdadeiro autor. Além da grana, ganharia espaço para mostrar meu trabalho. O reconhecimento viria naturalmente. Propus divisão de 50% de tudo que ganhássemos. Também impus como condição que não se drogasse durante a semana e nem antes dos ensaios. Aceitou sem titubear e perguntou quando começaríamos. Agora mesmo, respondi. O garoto era um demônio, ninguém tirava as notas como ele. No fim da tarde já executava uma música com perfeição. Fiquei extasiado. No dia seguinte estava lá novamente, ávido por jazz. Em nenhum momento reclamou de minhas composições, inclusive perguntou-me como eu não havia estourado com um material tão bom. Logo nossa engrenagem começou a funcionar. Descolei com o pessoal do Village alguns shows de abertura, depois o coloquei como atração principal. A recepção foi boa o suficiente para depois de algumas semanas colocá-lo no circuito local dividindo o palco com outros músicos. Enquanto eu compunha novas músicas, ocupava-me também de mantê-lo na linha. Cobrava dedicação absoluta e regulava seu uso de drogas. Formávamos uma dupla e tanto. Tratei de arranjar um agente, Charles, viciado em jogos, mas não em drogas, e o incumbi de conseguir a qualquer custo contato com uma grande gravadora. O rapaz era esperto, metade da cidade lhe devia algum favor, e conseguiu levar um figurão para vê-lo tocar. Entrei em cena e o convenci de que Peter era um tipo altamente vendável, de fácil aceitação pelo público, as mulheres não me deixavam mentir. Comprou a idéia. Ao cabo de um ano tínhamos um contrato com uma gravadora de renome, algum dinheiro no bolso e uma chance de ouro nas mãos. Adeus Village. Depois de alguns meses nos preparávamos para gravação do primeiro disco. Acertado o cachê, produção e onde ocorreriam as sessões, vi-me barrado por um brutamonte na porta do Studio. O sujeito dizia-me que eu estava proibido de entrar lá, não devia sequer colocar os pés na calçada. Enfiou um maço de dinheiro no bolso do meu paletó e me presenteou com um murro na boca. Perdi alguns dentes. Fiquei jogado na calçada até me arrastarem para viela ao lado e terminarem o serviço.

Descobri através de Charles que Peter negociava com a gravadora nas minhas costas e além de pedir que me tirassem da jogada, não gravou nenhuma de minhas músicas. O disco foi lançado na metade do ano e ao final dele era um sucesso de vendas. O garoto viajava o país em turnês, lançava mais discos e fazia cada vez mais shows e dinheiro. No entanto, eu tinha certeza de que era só questão de tempo até ele cair. Em turnê pela Europa foi preso com drogas, respondeu processo e teve de passar uma temporada na cadeia. Praticamente banido do velho continente, chegando aqui continuou em queda livre. Passou a ser visto com desconfiança. Drogava-se como louco, seus braços pareciam uma peneira de tantos furos. Não comparecia aos shows, não gravava mais discos. Torrou toda grana. O velho Village foi o único a aceitá-lo de volta. Foi o que nos restou e tínhamos contas á acertar.

Cheguei lá tarde da noite, faltando menos de dez minutos para o inicio da apresentação. Queria entrar sem que me notassem. A casa estava vazia. Velho Stu no balcão, Cora esperando para faturar em cima de algum otário e Durval, o doutor, o homem da medicação, rodeado pelos junkies. A mesma corja de sempre. Peguei uma mesa no fundo, afastada do palco e aguardei na penumbra. Peter, como de costume, estava atrasado. Subiu por volta da meia-noite completamente chapado, parecia um fantasma. O rosto envelhecido, entalhado como uma máscara mortuária, não lembrava em nada o garoto que eu conhecera. O som saía miúdo e fraco do trompete, era sofrível, sem vida. O ódio que eu acalentara no peito e trazia no bolso na forma de um calibre 38, foi sendo embotado por uma névoa espessa de tristeza. Nem lembrava há quanto tempo eu não tocava mais. Fui tomado de vertigem e de repente ouvi meu nome:
- A próxima música é para um amigo de longa data que hoje se encontra aqui conosco. Essa é para você, meu velho. Blues para Morgan.
E sorriu pela última vez.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lobo Antunes

“O que eu gostava, por exemplo, de conseguir, sem ostentação nem vergonha, coroar a minha calvície nascente de um chapéu tirolês de pena. Ou de deixar crescer a unha do dedo mínimo. Ou de entalar um bilhete de eléctrico dobrado n aliança. Ou de atender os meus doentes vestido de palhaço pobre. Ou de lhe oferecer o meu retrato em coração de esmalte para você usar quando for gorda, porque será gorda um dia, descanse, todos nós seremos gordos, gordos, gordos e tranqüilos como gatos capados à espera da morte nas matinées do Odéon.”

Os cus de Judas - Antonio Lobo Antunes

Literatura

Adicionei links para os blogs de dois excelentes escritores. Meu grande amigo, Daniel Rocha, e o muito gente boa, Professor Pedro Gonzaga.
Vale a pena!