quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Asobi Seku

Não sei se os dias me ultrapassam ou se tão somente me consomem. O dicionário define ultrapassar como o ato de ir além; transpor, exceder, e com certeza os dias o fazem, vão muito além do que eu sou capaz de suportar. A primeira definição de consumir é destruir (-se) totalmente, já a quinta é fazer uso de; utilizar, gastar. De qualquer forma por ambos sou deixado para trás, assolado pelos golpes do mundo.
Com certa apreensão aguardo Nicolas ligar pedindo que o encontre com o carro em boas condições, é o que nós dois esperamos, e isso fica implícito na conversa. Ele está em perfeitas condições, não há com o que se preocupar.

Um dia como o de hoje cansa. Um dia consagrado a espera, no entanto foi a única coisa que me restou. É como estar num buraco esperando alguém para me tirar de lá. E talvez esse alguém já esteja me aguardando, na beira do fosso, com uma pá de terra nas mãos. Não quero soar paranóico - psicose caracterizada por um conceito exagerado de si mesmo e idéias de perseguição, reivindicação e grandeza, que se desenvolvem progressivamente, sem alucinações. Gosto de encontrar o verbete correto. Ele já devia ter ligado. Agora vou ficar empenhado com esse carro. Logo mais vai ser noite, a vizinhança vai estranhar. São esses os sinais de que o dia começa a se exceder, o inominável passa a nos espreitar. Ele é a forma reversa de todos os atos e coisas que existem.

O telefone descansa na mesa de centro, as luzes da rua estão acessas e o sol deixou uma réstia alaranjada no céu. Não posso mais esperá-lo. Sinto a movimentação interna dos objetos, tão denso como se fosse o frio suspenso no ar, as sombras tornaram-se mais negras. Tempo esgotado. Pego a chave do carro, abro e fecho a porta com a suavidade que o silêncio exige e quando coloco a mão no corrimão da escada que me levará para fora do prédio, ouço o som inconfundível do telefone celular ressoando pelo corredor, um som limpo e estridente que se repete com persistência. Levo a mão ao bolso da calça, apesar de já saber que o esqueci em cima da mesa de centro. Azar. Pulo alguns lances de escada e quase deixo o molho de chaves cair. Por algum motivo que desconheço não há ninguém na portaria. Antes de chegar até a grade do prédio vejo um homem se aproximando do carro. O inominável. O dicionário define-o assim: o que não pode ser designado por um nome. Contudo, não é apenas isso, o que não tem um nome que o manifeste, é aquilo que não pode ser representado por nada que exista nesse mundo, é aquilo que excede nossa compreensão.

Assim que meus pés tocam a calçada saio correndo. O mundo ao meu redor, pelo menos parte dele, o pedaço que ainda reconheço, canta-me uma melodia suave - voz e violão. A música é familiar, a voz de uma mulher. Vejo Nicolas do outro lado da calçada sorrindo o seu sorriso de dentes falhados, acenando sua mão muito clara repleta de sardas. Uma luz esbranquiçada se derrama por sobre a rua de pedras negras, tenho a visão cegada. A cena lembra-me um dia de praia onde tudo reflete a claridade insuportável do sol. Tenho a impressão de que tudo, todas as coisas: carros, árvores, lixeiras, postes, guaritas, convergem em minha direção. O mundo pulsa e encolhe até escuridão. Nicolas põe as mãos no bolso, seu sorriso está quase no fim, não entendo o que ele diz. Ouço apenas a voz da mulher que canta, é japonês o seu idioma e, não sei bem o porquê, posso compreendê-lo.