domingo, 21 de outubro de 2012

O ancião

O gosto inequívoco. Voltar aos lugares marcar em mim a presença das coisas. Estacionar no mesmo lugar, percorrer o mesmo trajeto, falar com o homem da rua que guarda carros. Provar do ar gelado que a manhã carrega, estabelecer uma corrente de sentidos, registrar mais do que com os olhos. Minha mente investiga o que se move, de repente, sem aviso. Esse é meu ofício; o registro do que se percebe, mas não se vê.


“Profundamente dentro de si, carregava a escuridão, o refúgio e a calma de uma casa, e acima dela ele próprio se tornara o céu e a floresta em torno e a amplidão e o grande curso d’água que sempre por ali fluía. Que solitário é esse ancião que, mergulhado em si mesmo, se ergue repleto de seiva como uma velha árvore no outono! Ele se tornou profundo; para o seu coração escavou uma profundeza e o batimento dele vem de longe, como do interior de uma montanha .”
Rainer Maria Rilke

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Café Luna


O chão úmido denuncia que choveu há pouco. Faz um calor abafado, um mormaço saído de uma caldeira. Entro no café Luna e penso em escrever um conto que tenha a ver com morte, talvez motivado pelo cheiro ácido e sufocante dos cigarros, ou pela visão que tive dos velhos reunidos ao meio-dia da terça-feira, tomando café e fumando, na contramão de tudo que nos esforçamos para manter. Provavelmente já trabalharam o suficiente e agora desfrutam do merecido ócio da aposentadoria. Porém, a maioria deles não me engana, dândis que jamais sujaram as mãos. Um homem alto de cabeça raspada entra no café, tem por volta de quarenta anos. Magro, camisa xadrez puída nos punhos e sandálias marrom. Dirige-se ao balcão e fala com o garçom. Fica em pé por alguns minutos escolhendo uma mesa. Aparenta demasiada indecisão. Releio o que escrevi até agora e tento, na medida do possível, eliminar os adjetivos. Mantenho os olhos no homem, ele tem o perfil. Introspectivo e apático. Parece alguém que acoberta frustrações diversas e ódio. Pode ser ele, pois, além de mim, é o único sozinho no café, e não fuma. Se no conto houver morte um de nós será o responsável. Entretanto, se eu matá-los não poderei terminar de escrever, de maneira que ele é a opção restante. Matará os velhos, ou um dos velhos. Não posso matar a todos, é pouco verossímil. Quem mataria um punhado de velhos inofensivos sentados num café ao meio-dia de uma terça-feira? E o que é nosso homem? Um psicopata? Um órfão ressentido em busca de vingança? Um desempregado? Olho mais uma vez o algoz sentado debaixo do quadro da Marilyn Monroe; olhar absorto em um lugar remoto, ele mesmo apresentando sinais claros de decadência. Não só o envelhecimento físico, mas uma espécie de falta de vida como se nele ela já estivesse minguando. Mas, assim como ele, não estamos morrendo aos poucos iludidos por nossas vestes de invencíveis, jovens, arrogantes, ébrios? Morrendo pelo supérfluo, por números, metal. O homem contempla a passagem do tempo. O cheiro do café recende no ar. Ainda não estou certo de que ele é capaz do ato. Porém, os anciãos podem mais que nós todos e me olham com reprovação, como se soubessem o que tenho em mente enquanto corro os dedos pelo teclado do notebook. Em seus olhos há algo mais do que apenas censura, um misto de comiseração, raiva e prazer. Nada me pedem, nem suplicam, pois não temem a morte, já ultrapassaram esse dilema. Lá fora o sol brilha com suave intensidade depois de ter se mantido enclausurado entre nuvens durante boa parte da manhã. A claridade se derrama pelo salão da cafeteria. Os velhos voltam a fumar, o vozerio soa animado. O homem termina de beber o café que pedira e com um gesto chama o garçom. Do bolso das calças retira um bloco de notas e escreve algo. Arranca a folha e a entrega para ele. Levanta-se, lança um aceno discreto em minha direção, e vai embora. Tenho o ímpeto de segui-lo, sinto o corpo mover-se involuntariamente. Porém, uma força desconhecida faz com que eu permaneça sentado. Percebo que o garçom sorrateiramente me observa, sei que meu nome está escrito naquele papel, que deveria fugir, mas não o faço, e que algo irá acontecer. Os ançiãos silenciam.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mil Manhãs Semelhantes

Fragmento de um projeto que acalento faz tempo e aos poucos vem tomando forma. Um rascunho de abertura. Obrigado, Daniel.



Mil manhãs semelhantes, cinzas e chuvosas. Senti preguiça, mais do que isso, senti um esmaecimento como se o mundo tivesse parado de respirar, suspenso no mar, flutuando.”

Andando pela beira da praia encontrei Carol. Era um sábado de junho, inicio do mês, e batia um vento gelado de sul. Ninguém no mar, uns poucos pescadores - aposentados que sonharam a vida toda em trocar a cidade pelo litoral,– arriscavam molhar os pés na água turva. Alguns vira-latas corriam de um lado para o outro. Havia chegado a Santa Terezinha naquela manhã. Larguei o carro e fui descansar os olhos no mar. Quando criança imaginava que era possível nadar até lá onde não dá mais vista e escalar o céu. Durante os meses do inverno ia pelo menos uma vez no mês dar uma olhada na casa da praia que um dia fora de meus avós e agora me restara de herança. Julgava a casa e a praia como as únicas coisas verdadeiramente imutáveis no mundo. Claro que haviam sofrido alterações, sobretudo a casa, no entanto era como se estivessem embutidas numa espécie de fenda onde não podiam ser violadas por força externa. Sem dúvida a marca do tempo se fazia presente, porém de forma inescrutável. Meus avós estavam mortos, meus pais separados, meu irmão fora do país e meus tios cada qual vivendo seus problemas, portanto a casa da praia era a minha família.
No verão recebia alguns convidados, eventualmente alguém de Porto Alegre, velhos amigos ali mesmo da praia e Carol. Não a mesma Carol que eu reencontraria em um sábado de junho na beira do mar, mas a mulher que vivia comigo há seis anos e que também se chamava Carol. Talvez uma simples ironia da vida. Conhecemos-nos quando fui ao seu consultório lhe confidenciar minhas inquietações existenciais. Solícita, provavelmente apiedada, abdicou da ética profissional e me estendeu um convite para vê-la participar de um evento, literatura e psicanálise, numa pequena livraria-café no bairro onde eu morava. Coincidência, disse ela. Sendo assim, após o evento, tomamos café, rimos descontraidamente e demos fechamento a noite no sofá do meu apartamento ouvindo “I love you Porgy” na voz de Nina Simone.