sábado, 5 de outubro de 2013

O Adversário

Moisés desligou o telefone. O segurança tinha certeza, não estava enganado. Aquilo já durava um mês e na última semana havia sido diário. O desgraçado ficava lá parado em frente ao banco segurando a pasta de couro.
João Batista tinha quarenta e poucos anos, seis a mais do que Moisés. Desempregado, solteiro. Cabelos ralos anunciando a calvície. Morava com a mãe e passava os dias escrevendo. Aos quinze disse que seria escritor. Disse repetidas vezes e se pôs a escrever ano após ano. Enchia cadernos e folhas e mais folhas com seu rabisco nervoso. Os familiares fizeram tudo o que estivera ao alcance, inclusive acreditar que João publicaria um livro. Moisés dizia na escola que o irmão era escritor, entretanto, como o livro não saía nunca, parou de falar em João. Antes, porém, investiram nele dinheiro e fé. Pagaram cursos, oficinas literárias e até viagens. O livro não chegava ao fim, era o que ele afirmava. Depois, naturalmente, vieram as cobranças para que João mudasse os planos e investisse em outra carreira - que trabalhasse, fizesse algo que pelo menos lhe pagasse o cigarro. E, a partir disso, o que era problemático tornou-se como ferrugem encruada. João tornou-se personagem de si mesmo, a própria história que escrevia, a qual ninguém conseguira sequer ler.
Naquele dia Moisés não saiu do banco nem para almoçar e ficou quieto em sua mesa. No entanto, após receber o telefonema do segurança, sentiu-se como se agredido por força irracional: seu irmão estava lá e chamariam a policia caso não saísse. A coisa era séria agora, o gerente avisava. De início João Batista ficava em frente ao banco apenas alguns dias da semana e durante pouco mais de uma hora. Então aumentou a frequência e a duração do tempo em que lá permanecia. Moisés ao ver o irmão teve mau augúrio, boa coisa não saía dali. João nada disse em nenhuma das vezes. Nada, tampouco o cumprimentou. Olhavam-se apenas. Ingenuamente, pois consternado, Moisés confessou aos colegas que aquele homem era seu irmão mais velho. Por fim, depois de muitas reclamações e desconfiança dos funcionários, a polícia seria acionada, caso Moisés não solucionasse o problema. Desceu os degraus do segundo andar e ao chegar ao térreo olhou para o saguão como se quisesse ter certeza de que todos vissem o que estava prestes a fazer, para que sentissem um pouco da sua própria humilhação. Passou pela porta giratória - percebeu o quanto estava quente na rua. A claridade intensa da tarde era como uma espécie de ajuste de nitidez aos olhos. No contraluz viu João Batista, a indelével pasta de couro, porém a barba feita e os cabelos cortados. As roupas pareciam novas. Estou pronto, disse. Pronto pra quê? retrucou o irmão. João Batista tirou da pasta um maço de folhas, centenas, todas rabiscadas e as jogou para o alto. As folhas se espalharam multiplicadas pelo vento. Moisés correu pela rua atrás delas, tomado por impulso, não de salvá-las, mas talvez de voar. Correu, deu saltos no ar, ajoelhou-se no asfalto. João Batista caminhou por entre os carros parados e se desfez também da pasta de couro. Moisés passou o resto da tarde juntando as folhas que conseguiu recuperar. A noite leu as páginas que o irmão escrevera. No dia seguinte, às sete da manhã, João Batista acordou. Banhou-se e tomou café em companhia da mãe. Antes das dez horas já estava no banco, sentado no guichê ajeitando o dinheiro do caixa. Moisés acordou no mesmo horário que o irmão, beijou a mulher e saiu de casa com a pasta de couro e as folhas do romance debaixo do braço.

5 comentários:

Daniel Rocha disse...

Hmm, interessante o final, hein? No começo (não sei se é a minha falta de costume de ler contos, but...) achei um tanto confuso, tive que me concentrar para saber quem era João e Moisés (e quem era o segurança) e qual era a relação deles (talvez isso seja porque a primeira frase, como é de teu costume, começa no meio do texto, o que os antigos chamavam de in media res).

Gostei da ideia do cara ser um personagem dele, tipo, ele era o sonho que queria ser. Mas achei que ele estava com uma bomba, ou fazendo todo mundo de refém, por isso o tumulto. Não tinha entendido por que o cara jogou os escritos para cima, mas o fato dele voltar (ou ser obrigado a voltar) para o emprego que, provavelmente, odiava, explica. O funcionalismo público matou o sonho, que nem uma colega minha (aposentada da Caixa) disse que ia acontecer, caso eu fizesse concurso. Mas legal que o irmão – pelo menos alguém da família, sua primeira sociedade – acreditou, incentivava ele (que nem Theo e Van Gogh).

Legal, é isso aí, meu. Produção. Get busy.

PS – E esse layout novo do blog?

Daniel Rocha disse...

Menos de duas semanas para começar a maratona das 50.000 palavras até o fim de novembro no www.nanowrimo.org. Já te inscreveu?

Em tempo: hoje estava ouvindo o Monk que tu me deu quando te dei o original da história de Carol. Sonzeira.

Daniel Rocha disse...

Bom, como hoje estão chovendo felicitações no facebook pra ti, e tu sabe que não gosto de ser só mais um, passei aqui para te desejar um feliz aniversário, com bons momentos, café, jazz (estou ouvindo o trompetista Jim Rotondi enquanto te escrevo), muita literatura e muitos artigos e ensaios acadêmicos!

Mantenha a chama acesa.

E pinta aí para um coffee.

Aquele abraço

Marcela disse...

Marcelo duas coisas:

Primeiro, achei bárbaro, extremamente poética a parte do bancário querendo voar. Tenho estudado sobre bancários e fica nítida a angústia que eles vivem. Além de o desfecho ser lindo, ou seja, angústia por angústia, talvez valha mais a pena ficar com a poética.

Segundo: Me vi nessa burocracia toda, já fazem mais de dois anos e as tarefas do dia-a-dia fazem com que eu não me sensibilize mais a pinto de escrever contos da forma que gosto. Este texto foi uma luz pra mim. Voltarei a usar meu caderninho de anotações poéticas no bolso.

Abraços e obrigada!

Marcelo Martins disse...

Olá, Marcela!
que bacana teu comentário. Agradeço muito. Sabia que tb me vejo envolvido numa burocracia brutal. Relatórios para o trabalho, para a faculdade, para tudo. Nem tenho escrito. a última estória que escrevi foi essa. Só trabalho, ensaios, relatórios de estágio e, pior de todos, planilha no excell. Mas distraído venceremos! Resista!
Grande abraço