segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Da calçada

Andando pela calçada estreita de uma rua do baixo centro, avistei um preservativo masculino usado – existe um nome muito mais econômico para isso. Enrolado em si mesmo, abandonado na entrada da garagem. Será que alguém trepou ali na noite anterior? Ali? Vulnerável, ereto, sem nem ao menos se recostar em alguma coisa? Segui caminho e a uns 20 metros à frente estavam dois guarda-chuvas jogados ao chão perto de um poste. Guarda-chuvas idênticos, siameses, talvez deixados na calçada ao mesmo tempo. Os dois estourados com as hastes retorcidas. Imaginei que deviam pertencer a um casal de gêmeos. Mais uma calçada transposta e vejo um poste tomado de sacolas plásticas de lixo, e, ao lado, uma camiseta amarela de criança em bom estado. Estava em uma das sacolas e deve ter escapado. Duvido que a criança tenha a colocado ali. Em bom estado. Chamou-me à atenção.
No cruzamento da rua com a avenida, nos fios que também se entrecruzam, um par de tênis sobraçava dependurado pelos cadarços. Um all star preto. Atravessei apressado e pelo resto daquela rua nem tão longa que desemboca em outra avenida transtornada de carros, um rastro de lixo se acumulava pelas calçadas e postes como se tivessem brotado da terra. Marcas indeléveis da nossa presença, do que fazemos e somos. Um tanto de vida esquecida ou tão somente trocada. Uma coisa a substituir outra: lembranças, pessoas, palavras. A cobra que engole o próprio rabo. Acúmulo e desperdício. Uma sociedade inteira orientada pelo principio do consumo e do descarte. E devemos fazê-lo em ritmos industriais. Talvez um dia a Terra venha a nos devolver isso que estamos lhe obrigando a engolir. O lixo será nossa herança, um legado puro e autêntico da nossa identidade e tempo. Enquanto isso, caminhamos. A rua é o palco da cidade onde os encontros se tornam possíveis, em que afluem caminhos e os estranhos se reconhecem. Os objetos e restos jogados nas calçadas ainda nos pertencem, carregam a presença de quem por ali passou. Talvez a nossa história de homens modernos seja recontada pelas gerações futuras através do lixo. Quem sabe até um museu dos homens catadores. De forma assustadora o número de moradores de rua aumenta e um estranho paralelo se estabelece entre eles e a calçada: descartamos tudo que é indesejado, até pessoas.

Um comentário:

Daniel Rocha disse...

Interessante, hein? No começo achei que o lance da camisinha usada ia ter a ver com os guarda-chuvas gêmeos, tipo um detetive tentando juntar as pistas que o levassem até uma pessoa que ele ainda não sabe quem é. Ficou legal essa mudança de tom para o narrador juntando o lixo na memória e chegando a conclusão que substituímos uma coisa pela outra, uma pessoa pela outra, um sentimento pelo outro, e que um dia a Terra vai nos devolver todo o lixo que jogamos nela. Apocalíptico.

“Enquanto isso, caminhamos. A rua é o palco da cidade onde os encontros se tornam possíveis, afluem caminhos e os estranhos se reconhecem”. Só essa aqui já dá outro conto.

Legal que a tua produção anda em alta. Continue caminhando. Tenho uma prova casca amanhã, montes de matéria, mas tu sabe que pela literatura a gente faz um esforço a mais e encontra um tempinho.

Quero ver texto novo amanhã, by the way.

Abraços ao som de “Something I Don’t Know”, sonzeira do EXTREME.