quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Invasor

Entrou em casa e logo notou os chinelos repousados no tapete. Repousados talvez não seja a palavra mais adequada para expressar a condição em que ele os encontrou. Foram deixados ali. A luz do abajur estava acessa e uma meia dúzia de almofadas espalhadas entre o sofá e o chão da sala. Entretanto o resto do cômodo estava organizado do modo habitual: os livros na estante, um molho de chave em cima da mesa e alguns jornais ou papéis com anotações desimportantes. Ás vezes um celular. Menos bagunça do que sinal de que a casa era habitada. A cozinha... Não teve tempo de averiguar a peça porque sua atenção foi capturada por um som abafado vindo da direção do quarto. O apartamento não era grande; três quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. O som que chegara até seus ouvidos, em principio como que encoberto, provinha do quarto maior, o de casal. Em pé, parado no centro da sala, o homem aguçou sua audição concentrando os olhos numa espécie de ponto invisível na parede. Franziu o cenho e distinguiu sons menores que compunham aquilo que lhe parecera um rumor. Havia uma batida intermitente de metal com madeira e o som de alguma coisa sendo arrastada, e somado a esse outro menos intenso, realmente mais abafado, um tipo de murmúrio ou gemido. Não teve dúvidas de que era produzido por uma entidade viva. Deduziu que fosse de humanos, logo havia alguém no quarto. O homem guardava posição utilizando-se, além da audição, de uma percepção aguda para compreender o que ocorria no apartamento. Correu os olhos e viu uma bolsa e um casaco pendurados no cabideiro próximo a entrada. Ambos femininos. Uma luz fraca provinha do quarto fazendo um recorte entre o chão e a parede. Era a luz de cabeceira do seu lado na cama, a mesma que havia usado na noite anterior para ler um livro sobre com influenciar pessoas ou coisa do gênero. Mais do que estranho achou irônico pensar no livro naquele momento em havia tanta coisa em jogo. Tanta coisa em jogo. Pôde ouvir sua própria voz repetindo a frase como se presa a cabeça. Pensou no filho - o único - prestes á completar dezoito anos. Ele entenderia o que estava em jogo? O que seria dele justo agora com toda a vida pela frente? E a vizinhança? Eram quase os mesmos desde a construção do prédio, estavam com ele fazia anos, quando ainda era caixa do banco. Pois eles e o bairro, o mercado, o pessoal do ponto de táxi, da banca de revista, eram a extensão da sua família. E o que diriam seus pais? O velho não perderia a oportunidade; Nunca me enganou. Eu te avisei! Diria isso e coisas piores. Os pensamentos se sucediam e se multiplicavam por vontade própria e findaram apenas quando recordou que havia um revólver na gaveta da mesa do escritório. Permanecia trancada a chave, uma cópia ficava no cofre e outra no molho que trazia consigo no bolso. Sentiu uma fraqueza nos joelhos, um cansaço que o fez tatear buscando o sofá. Deixou-se ficar ali desacomodado. Sentia como se o pensamento do revólver tivesse sido enxertado em sua cabeça, algo que não lhe pertencia. Um invasor. O barulho do quarto cessou e deu vez a um rumor de passos circulando como ratos desorientados. Pensou no que viria a seguir. Intuiu que as chances de mudar o rumo para o qual as coisas se encaminhavam eram escassas, quase nulas. Concentrou-se na própria respiração. Podia senti-los e sabia que eles faziam o mesmo. Entreolhavam-se incrédulos, atordoados pela dúvida, uma esperança estúpida de que não fosse ele que tivesse entrado no apartamento, nem o filho, que fosse realmente um ladrão, um desses aproveitadores que entram nos prédios sorrateiramente. Contudo, no fundo e sem saber explicar o por que, sabiam que era ele que estava na sala. Ainda sentado no sofá meditou que não saberia dizer que forças o haviam trazido até ali e o que esperavam que ele fizesse. Levantou-se. Foi até o escritório. Abriu o cofre e pegou o revólver, depois se virou para a janela que dava para o pátio da escola onde o filho havia estudado. Ficou ali parado e deixou que a vida se encarregasse de resolver o resto.

2 comentários:

Anônimo disse...

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Daniel Rocha disse...

Marcelo Martins na área!

Interessante o final, aberto, o leitor cria junto o que aconteceria na base do “e agora?”. Bom, enquanto ia lendo, pensei que podiam ser dois amantes (duas pessoas no quarto fazendo algo escondido), depois pensei que os barulhos podiam ser ratos correndo pelo apartamento, mas também pensei que o filho podia querer se matar e o pai chega na hora, já que o revólver estava guardado em seu quarto. Tinha me esquecido como é um ótimo exercício de criação a gente ler o texto alheio. Talvez tu não tenha pensado nenhuma dessas coisas que enxerguei na história, mas mesmo assim está tudo certo. Se não foi, é porque a história se emancipou de ti. Muy bueno.

Falando em ficção, pra matar as saudades, coloquei um continho no Distantes Trovões. Obrigado por manter acesa a chama da literatura.

Aquele abraço, e agora vou responder teu mail, e no aguardo dos cafés literários na Festipoa...