quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A Medida do Mundo

“Rigorismo” - esbravejou o pai. Ainda que não fosse um brado de guerra era pleno de revolta, porém sem muito alarde para não constranger as filhas. Estavam apenas dois minutos atrasados pelas contas do pai, ou seja, tecnicamente é um atraso, mas, convenhamos. Proibiram a entrada das meninas, dessa forma perderiam os dois primeiros períodos e a prova. Isso mesmo; perderiam a prova por dois minutos de atraso. Culpa do trânsito, disse o pai. “Hoje em dia, com esse trânsito, ás vezes se chega dez minutos antes, ás vezes dez minutos depois”. Confessava a impotência diante dos fatos. Inflexível, a secretária afirmou que as supervisoras não permitiram a entrada das meninas. Teriam de esperar. “Rigorismo.” Dessa vez a voz saiu vacilante como se na verdade anunciasse que ele iria se retirar logo em seguida, o que acabou fazendo depois de um sapatear um pouco em frente à porta. As garotas sentaram-se num banco próximo a entrada, disposto estrategicamente para visitantes e retardatários.
As regras são aplicáveis aos outros, mas não a nós e aos nossos. Diz o provérbio: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Nada além do óbvio, ainda que ele seja ardiloso.
Talvez o homem tenha voltado para casa remoendo a ideia de que se tivesse imposto sua prerrogativa de cliente, seria atendido, de mais a mais o caso nem poderia ser considerado uma exceção à regra; antes uma questão de bom senso. Duas filhas - não pagava pouco à escola, deveriam levar isso em conta. Isso era o que estava implícito nos seus passos inquietos, no rosto crispado. Achei que a qualquer momento o discurso fosse lhe fugir da boca. Foi uma espécie de pensamento condicionado, fiquei esperando a frase. Aquela frase. Não disse. Parece-me que entre nós instalou-se certa ideia subterrânea de que tudo está permeado pelas relações cliente/empresa, custo x benefício, lucro e prejuízo. A medida do mundo.
É provável - mais do que provável, quiçá indiscutível - que a escola esteja com a razão e não o pai. Regras são regras, servem para coibir o caos (sic). Pedir bom senso do mundo é exigir mais do que as pessoas podem dar. Eu, que cheguei com trinta minutos de antecedência, fiquei pensando se não carecia também de um tanto mais de “rigorismo”.

2 comentários:

Daniel Rocha disse...

O corte quase no fim para primeira pessoa e a referência ao pai é porque o narrador era uma das gurias, certo? Se for isso, achei bem interessante.

Abraços e keep on writing!

Marcelo Martins disse...

Meu caro, F.Bookman. Grato pela visita honesta ao blog. Esse lance de escrever é muito interessasnte, alías de receber o retorno. Não pelo tapinha nas costas, mas pelo feedback mesmo, do que funcionou e do que não funcionou. E a tua visão é sempre interessante porque as vezes, na maioria, é diferente da minha. A victoria leu a crônica e aparentemente não pensou nessa troca de vozes, não imaginou que fosse o pai ou uma das meninas, imaginou ela que fosse eu mesmo narrando. Para a grande maioria não existe narrador, mas sim a pessoas que escreve. Há uma mudança nas pessoas do discurso, de terceira para primeira, e aquelas aspas indicam a voz direta do pai e em outras passagens o dicurso indireto. Mas o narrador é aquele sentado que observa a cena, esse que chegou com 30 minutos de antecedência. Não poderia ser uma das meninas porque elas e o pai chegam todos juntos. E o narrador: Eu que cheguei com trinta minutos de antecedência. Além disso, a voz que reflete é muito madura para uma menina em idade escolar. A intenção é que o texto soasse como uma crônica/conto. Escrevendo e relendo-o, essa é a impressão que eu fiquei, mas vai ver é porque fico impregnado do texto por mexer direto nele. e produzir diariamente num curto espaço de tempo não permite muito distancioamento, o texto adormecer. Mas até agora - publicarei o próximo logo em breve - tenho achado legal. Não me cobro para fazer um supertexto profundo e acabadissímo. Escrevo trinta linhas ou vinte e oito no minimo e trabalho em cima disso. É bacana!
Gracias,
abraço