quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

À Deriva


Olhei para as mãos de Raquel; magras, dedos longilíneos, unhas feitas, porém sem esmaltes, e aliança no dedo indicador da mão esquerda. Não domino a convenção destes códigos, não faz diferença, é somente a transitoriedade dos símbolos. Um papel cunhado com um rosto e um número ao qual atribuímos o nome de dinheiro, enquanto outros chamam de felicidade. Raquel estava sozinha na mesa, impaciente, mexendo no celular lidando com preocupações reais ou inventadas. Fiquei observando de longe seus cabelos loiros ondulados, o rosto delgado e o olhar miúdo e pensativo. Era Raquel e seus medos, incerta do que estava fazendo, confusa a respeito do que sentia e como, ou porque, se via compelida a colocar toda a sua vida em jogo. Os filhos pequenos; Ana e Rafael, o emprego no colégio, a carreira acadêmica, o prestígio e a imagem que tinha de si mesma. Devia estar se perguntando por que se atrevera a perder aquilo que de mais caro possuía; a rotina arduamente perseguida e moldada ao longo dos anos.
Em minha defesa digo que não me propus a corromper sua vida, invadi-la insidiosamente com um linfoma cancerígeno ou com a violência dos tornados. Não havia me programado para conhecê-la, ao contrário, continuo a desconhecendo. O que sei a seu respeito é involuntário, fragmentos que se foram descolando de sua boca extenuada enquanto nos deixávamos abandonados na cama como que distantes de nós mesmos. Raquel se distendia pelo colchão, jogava as pernas por sobre meu corpo e falava, lúcida e impassível, de sua vida como se comentasse a existência de outra pessoa. Creio que tenha sido ela a me escolher, que estava decidida antes que eu a tivesse olhado pela primeira vez, antes que em minha mente surgissem as primeiras e tímidas evocações da sua presença. Não que eu esteja me isentando de tudo que lhe disse, das promessas sussurradas ao ouvido de que nada mudaria no concerto monolítico de nossas vidas, e também das coisas que não foram ditas. Acordamos um contrato de cláusulas ignoradas. Ainda assim lá estava Raquel saída do meio da tarde, blusa branca e calças jeans, iluminada por um facho de luz que cruzava o ambiente e repousava em seu rosto. Poucas vezes voltaria a vê-la tão linda, dotada de uma inocência que não existia entre nós, assombrada por temores que eu não podia garantir serem infundados. Eu também os sentia. Não era vergonha de sermos descoberto, talvez algo mais próximo da ansiedade, ou do terror que invade o preso na sala de tortura a espera do destino que se lhe apresenta inexorável. Certa resignação. O medo de que Raquel se tornasse para mim uma necessidade e em algum momento um de nós dois tivesse o rompante, tanto equivocado quanto ingênuo, de estender ao outro a armadilha dos amantes: o amor, a fuga romântica da realidade, o recomeçar a vida aqui em outro lugar, outro tempo. Não há como remediar as ilusões. Porém, nessa época vivíamos o desconhecido, a beleza selvagem do infortúnio. Raquel sorriu seu meio sorriso e penetrou seus olhos nos meus. Tive vontade de colocar minha mão sobre a sua, mas contive o ímpeto. Conversamos futilidades amenas naquela meia hora, contando em segredo os minutos que nos separavam do acanhado quarto de hotel. Só depois de muito tempo é que fui entender que já estávamos distantes, à deriva no mar.

5 comentários:

Marcela disse...

Fico impressionada como tens o dom de desenhar um cenário e fazer com que o fim sempre me surpreenda! Sempre que leio nunca sei ao certo o que senti porque ao lê-lo meus sentimentos se digladiam. Então o que é legal é que nesta deriva não há marasmo!

Marcelo Martins disse...

Obrigado, Marcela! que legal teu comentário, dá uma satisfação de saber que gostaram do que nós escrevemos. Acho que de certa forma estamos todos a deriva, buscando alguma coisa incerta, ou viver é mesmo esse estar nos braços do mar.

Marcela disse...

:)

Daniel Rocha disse...

Em primeiro lugar, parabéns pela volta à ficção. Sabemos que escrever é um exercício, prazeroso tanto quanto trabalhoso. Se somos todos monotemáticos, digo que tu tem o dom de escrever sobre esses silêncios a dois e barulhos internos dentro dos relacionamentos. Interessante a primeira metade do conto, sobre o não querer prometer para não ter que cumprir, esse acordo de ser apenas uma noite (ou algumas noites), mas que no fundo já se antevê que o outro espera – e espera que nós esperemos – algo mais.

Interessante também os dois lados da moeda em “um papel cunhado com um rosto e um número ao qual atribuímos o nome de dinheiro, enquanto outros chamam de felicidade.” Também esse desacordo em conhecê-la fisicamente, mas continuar desconhecendo-a de verdade. Mas então me dou conta de que essa cena se passa em uma tarde, não em uma noite, e o narrador joga com os tempos, o antes e o depois, a conversa, o encontro no quarto. Ele teve vontade de encostar a mão na dela, uma demonstração de carinho, mas se conteve. O medo de que Raquel se tornasse para ele uma necessidade, trazendo consigo a armadilha dos amantes: o amor.

Legal a última frase, que da primeira vez que li me pareceu um trocadilho com eles estarem de carro andando ao lado do mar, distantes do quarto, mas também distantes emocionalmente entre si, sem mais intimidade nenhuma, à deriva.

Acho que muitos dos contos daqui têm esse conceito das dificuldades de relacionamento, e por isso poderiam formar um livro de contos com essa temática. Pode render.

Obrigado por manter a chama acesa. Continua escrevendo. Abraços e vamos marcar o café com letras em breve – até deixo tu pagar, rá rá.

Daniel Rocha disse...

Atenção, começamos o outono e o sol entrou em áries.

Hora de atualizar o blog, responder e-mails e patrocinar cafés para os amigos pobres. Até estou pensando em retomar as caminhadas amanhã (depois te conto se deu certo).

Aquele abraço e send news, my friend.