quinta-feira, 24 de maio de 2012

O escritor, o monstro e o atleta


Nelson Rodrigues escreveu, ininterruptamente, durante dez anos, crônicas diárias para a coluna ”A vida como ela é” do jornal carioca O Globo. Nelson teve uma relação de devoção com a escrita, indo muito além do profissional. Não sou, talvez nunca seja, um grande leitor da obra rodriguiana, porém não há como não reconhecer a grandiosidade do feito e o talento do homem. Ainda que se questione o formulismo das crônicas, a repetição obsessiva do tema da infidelidade feminina e invariavelmente o desfecho em crime passional, Nelson foi um monstro de fôlego incansável, no mesmo período também escreveu obras fundamentais da dramaturgia brasileira.

Para ser escritor, mesmo que medíocre, deve-se ser um atleta: escrever diariamente e de forma constante. Apesar do pouco talento, persistir. Sou simpático aos operários, esses que exercem suas tarefas como máquinas e, por conseguinte, suas aptidões. São homens de fé. Entretanto, confesso que sou devoto das musas, da crença na inspiração transcendente, quase mediúnica, muito mais por força da preguiça e bagunça da minha personalidade. As musas são preguiçosas, dadas a caprichos e futilidades.

O fato é que tenho mais gosto pela escrita do que talento, e bem menos pela disciplina. Certa paixão me guia por estas linhas. Lembro-me sempre dos medíocres, aqueles de qualidade média e duvidosa, ainda que esforçada - meus pares. Calar-se ou tão somente deixar para a gaveta nossos papéis? Hoje a internet modificou completamente a relação dos escritores com os leitores. Há espaço para todos, excessos, e nada disso tem a ver com talento ou qualidade. Mesmo que o meu leitor imaginário jamais venha a me ler, a possibilidade existe. Escrevo para ser lido, portanto para alguém. E o talento? Imagino Michael Jordan no ar, em câmera lenta, num movimento estranho que mais parecia o oposto, que na verdade ele não estava a se mover, mas simplesmente parado no ar sob olhares estupefatos da platéia. Penso também em Hendrix contorcendo sua Fender Stratocaster com se tivesse feitiço nas mãos. Eles sim, os bem-aventurados, eleitos das musas. Nelson Rodrigues também foi um deles; deixou-nos um legado poderoso, uma obra que fala por si mesma. Foi um incansável, e talentoso. Esse é o abismo.

2 comentários:

Daniel Rocha disse...

Cara, muito bom. Me fez pensar. E escrever, o que é ótimo.

Acho que foi Picasso quem disse “que a musa te surpreenda trabalhando”, e lembro do Vargas Llosa dizer que ele se surpreendeu com Flaubert, que não era “talentoso”, mas muito esforçado, e graças a sua disciplina e perseverança escreveu uma obra-prima como Madame Bovary. Também assisti o Will Smith explicando a diferença entre talento e habilidade. Talento é natural, você tem. Habilidade são horas e horas de prática, e ele considera seu sucesso fruto não do talento, mas da habilidade.

Uma vez li do Freddie Gruber (professor de bateria de papas como Neil Peart e Steve Smith) dizendo que, quando você nasce ganha um beijo da sua mãe e outro de Deus, e a isso se chama talento. Se você treina muito uma coisa, e não consegue ser bom, alguém não te deu aquele beijo. Quer dizer, acredito que temos que ter a sementinha (para ser um artista, um criador de símbolos, seja a área que for) e precisamos de prática e exercício para transformá-la em uma plantinha, quem sabe até uma árvore, se a gente se dedicar a isso. Sim, Eddie Van Halen tem o dom, mas ele praticou horas e horas para tocar do jeito que toca, e mudar a história da guitarra. O tal do Perna (que deixei o link lá no blog) se levantava às 6 da amanhã, e estudava guitarra das 7 até meio-dia, depois da 1 até de tardezinha, e de noite escutava os guitarristas para aprender suas técnicas.

Sempre esperei a inspiração alienígena para escrever, aquela ideia e aquela frase que vem dos céus, mas atualmente acho que a gente precisa do atleta, de prática constante. Prática diária, de preferência. Como disse Coltrane, “passe um dia longe do seu instrumento e ele passará uma semana longe de você”. O mesmo se aplica a escrever. Um dia só longe, e a coisa vai embora. A gente enferruja. Até porque a gente – acho eu – precisa escrever bastante, e muito disso jamais será lido (olha nossa vasta correspondência eletrônica, por exemplo). Mas tudo é óleo para a máquina.

Claro, isso é uma busca. Não que eu consiga aplicar tudo isso, mas a busca é válida. Nenhum dia sem uma linha.

Os sinais na estrada estão mais fortes hoje. Segue em frente.

Abraços, no aguardo das resenhas que virão...

Daniel Rocha disse...

Ah, lembrei que tenho o Asfalto Selvagem. Ele escreveu um capítulo por dia, publicados diariamente, menos domingo, quando não circulava o jornal.