quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Café Luna


O chão úmido denuncia que choveu há pouco. Faz um calor abafado, um mormaço saído de uma caldeira. Entro no café Luna e penso em escrever um conto que tenha a ver com morte, talvez motivado pelo cheiro ácido e sufocante dos cigarros, ou pela visão que tive dos velhos reunidos ao meio-dia da terça-feira, tomando café e fumando, na contramão de tudo que nos esforçamos para manter. Provavelmente já trabalharam o suficiente e agora desfrutam do merecido ócio da aposentadoria. Porém, a maioria deles não me engana, dândis que jamais sujaram as mãos. Um homem alto de cabeça raspada entra no café, tem por volta de quarenta anos. Magro, camisa xadrez puída nos punhos e sandálias marrom. Dirige-se ao balcão e fala com o garçom. Fica em pé por alguns minutos escolhendo uma mesa. Aparenta demasiada indecisão. Releio o que escrevi até agora e tento, na medida do possível, eliminar os adjetivos. Mantenho os olhos no homem, ele tem o perfil. Introspectivo e apático. Parece alguém que acoberta frustrações diversas e ódio. Pode ser ele, pois, além de mim, é o único sozinho no café, e não fuma. Se no conto houver morte um de nós será o responsável. Entretanto, se eu matá-los não poderei terminar de escrever, de maneira que ele é a opção restante. Matará os velhos, ou um dos velhos. Não posso matar a todos, é pouco verossímil. Quem mataria um punhado de velhos inofensivos sentados num café ao meio-dia de uma terça-feira? E o que é nosso homem? Um psicopata? Um órfão ressentido em busca de vingança? Um desempregado? Olho mais uma vez o algoz sentado debaixo do quadro da Marilyn Monroe; olhar absorto em um lugar remoto, ele mesmo apresentando sinais claros de decadência. Não só o envelhecimento físico, mas uma espécie de falta de vida como se nele ela já estivesse minguando. Mas, assim como ele, não estamos morrendo aos poucos iludidos por nossas vestes de invencíveis, jovens, arrogantes, ébrios? Morrendo pelo supérfluo, por números, metal. O homem contempla a passagem do tempo. O cheiro do café recende no ar. Ainda não estou certo de que ele é capaz do ato. Porém, os anciãos podem mais que nós todos e me olham com reprovação, como se soubessem o que tenho em mente enquanto corro os dedos pelo teclado do notebook. Em seus olhos há algo mais do que apenas censura, um misto de comiseração, raiva e prazer. Nada me pedem, nem suplicam, pois não temem a morte, já ultrapassaram esse dilema. Lá fora o sol brilha com suave intensidade depois de ter se mantido enclausurado entre nuvens durante boa parte da manhã. A claridade se derrama pelo salão da cafeteria. Os velhos voltam a fumar, o vozerio soa animado. O homem termina de beber o café que pedira e com um gesto chama o garçom. Do bolso das calças retira um bloco de notas e escreve algo. Arranca a folha e a entrega para ele. Levanta-se, lança um aceno discreto em minha direção, e vai embora. Tenho o ímpeto de segui-lo, sinto o corpo mover-se involuntariamente. Porém, uma força desconhecida faz com que eu permaneça sentado. Percebo que o garçom sorrateiramente me observa, sei que meu nome está escrito naquele papel, que deveria fugir, mas não o faço, e que algo irá acontecer. Os ançiãos silenciam.

Um comentário:

Daniel Rocha disse...

“...pela visão que tive dos velhos reunidos ao meio-dia da terça-feira, tomando café e fumando, na contramão de tudo que nos esforçamos para manter”. Legal, é a visão poética do ócio e da independência pelo fato de estarmos “morrendo aos poucos pelo supérfluo, por números, metal”. O vil metal que faz o mundo girar, e querem nos convencer de que justifica tudo. Eles “não temem a morte, já ultrapassaram esse dilema”, o que significa que estão livres. Interessante a estranheza dos anciãos em ver um cara com laptop no meio deles. Me pareceu mais a estranheza pela geringonça moderna do que pelas intensões daquele desconhecido rapaz.

E quando estava a fim de continuar lendo, a história terminou. O homem escreveu o nome do narrador e protagonista no papel, foi embora e algo irá acontecer. Os anciãos silenciam. Ele vai morrer? Já está morto? Apenas retomaram suas divagações sobre política ou sobre o passado? O que será que anciãos conversam no Café Luna? Será que eles também estão planejando escrever um livro, e estão há mais de trinta anos se amarrando?

Aquele abraço e continua resistindo!