segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Geografia Política do Afeto Urbano

Acredito que existem coisas que só podem ocorrer em determinado espaço geográfico, como aqui nesta cidade, enquanto outras também só o fazem em sítios específicos de uma estrutura. O espaço de uma cidade não é algo concreto, é um lugar imaginado e afetivo. Só aqui o sol mistura-se de forma tão íntima com o vento gelado que ambos acabam fazendo os parques ao meio-dia se parecem com terras desertas, só aqui o inverno tem a força de nos repeliraproximar. Existe apenas um local em que me permito alugar filmes: a locadora da esquina da Vasco com a Fernandes. Frequento aquele lugar a mais de 15 anos. Calculo que ao longo de minha vida devo ter percorrido mais de trezentos quilômetros pelas calçadas irregulares da Fernandes Vieira, ora pelo lado esquerdo, ora direito, cruzando prédios, olhares, esquinas, pessoas. Comecei alugando fitas em VHS, depois fui migrado para os DVD e hoje não sofro pelas mudanças que estão a caminho. Mais do que pelo fato de ser no Bom Fim, e pelos filmes que encontrava apenas ali - cult movies europeus, raridades do cinema undreground, ou alternativo, ou seja lá como o chamem – o que em realidade me atraía eram as pessoas. Aquele tipo que julgava encontrar no Bom Fim; charmoso, de culto a intelectual, interessante apenas pelo jeito (des)pretensioso de se mover, o ar impetuoso de quem não teme os encontros fortuitos da vida, e isso para mim era o próprio mistério. Meu coração dizia-me que só ali naquelas ruas calcinadas de pegadas eu poderia recebê-los. O Bom Fim era poesia concretizada diante de meus olhos ébrios deslumbrados.

Pelo bairro caminhei por todas as ruas, em todas as direções, sempre tão próximo e distante. As calçadas carregam pedaços meus. Vi os bares se transformarem em lojas, em restaurantes, tomados pouco a pouco pelo vírus da impessoalidade. Vi o altivo e imponente Baltimore ser transformado num estacionamento a céu aberto. Dizem que futuramente será um desses prédios em sintonia com a arquitetura moderna. Cruzei pessoas que já não existem mais e outras que deixei de ver e foram se apagando em mim. Ainda não vi o suficiente. E mais do que sua concretude, ou algo mítico que pudesse ser explicado por algum homem das ciências, um sentimento de pertença se fundiu em minhas memórias distorcendo tudo que lá vivi, borrando meus olhos com as cores de um amor impossível. Se fosse me dada à licença de nascer no Bom Fim, eu a declinaria. Não quero manchá-lo de obviedades, afogá-lo em provincianismo. Meu medo sempre foi o de desmistificá-lo, de não ver mais sua beleza maldição, seu vanguardismo obsoleto, decadênciapogeu. Como amantes nosso medo foi o da destruição, o apagamento a que o tempo nos submete, inclusive daquilo que imaginamos ter vivido. Contudo meus pés têm o vício do retorno e volta e meia me levam a percorrer aquelas mesmas pegadas, como se tivesse por efeito renová-las, pavimento em pedra do meu sentir. E quando questionado porque não pego filmes perto da minha casa, respondo que já estou em casa.

Um comentário:

Daniel Rocha disse...

Tua dica deu certo. Consegui escrever e atualizar o blog hoje, dia em que Jorge Amado completaria 100 anos.

Hmm, bonito texto-homenagem sobre o Bom Fim.

Send news. Aquele abraço.