quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Último Cigarro

Ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir. Dei uma longa tragada, a brasa ardia preguiçosa no escuro. O último cigarro.

Há quem diga que dar a palavra é o mesmo que firmar um compromisso. Eu não. Conheci Dora Sarlo num bingo no centro da cidade numa tarde agradável de outono. Era uma senhora atraente para sua idade, viúva, dada a futilidades e viciada em jogos. O marido foi um grande exportador do ramo calçadista. Morreu com dois tiros na cabeça deixando toda a fortuna para a mulher. Não tinham filhos. Ela dizia que o velho era mesquinho, teve o que mereceu. O crime nunca foi solucionado. Mas naquela tarde detalhes dessa natureza não me interessavam. O bingo era um lugar pouco melhor do que a sinuca que ficava em frente a pensão e menos divertido que um bordel da Farrapos. Não esperava encontrar lá mulheres requintadas, cheias de grana, do tipo que viajam pela Europa com o amante. Quando me aproximei de Dora queria apenas diversão. Ela estava faceira e já bastante embriagada, dava olhares lascivos para qualquer um que a encarasse. Não foi preciso mais do que um sorriso para sentar-me ao seu lado. Disse que a sua risada era gostosa, ela respondeu que eu devia ser um cafajeste. Afirmei que sim; que ela estava correta e se me desse a oportunidade eu lhe mostraria o quão cafajeste eu poderia ser. Riu alto - ela gostava de pessoas vulgares. Gostei de você, disse. Fomos para sua casa na Zona Sul. Fiquei impressionado com a entrada do casarão, vi que ela não era pouca coisa.

Foi fácil enredá-la, dizer o que ela queria ouvir, dar um tanto de carinho,atenção. Dentro de pouquíssimo tempo eu já tinha acesso total a casa. Dormia e comia lá, dirigia o carro como se fosse o dono, via futebol jogado no sofá da sala. Depois ela começou a me vestir, comprava desde as cuecas até os sapatos. Nem precisei esconder que de fato era um aproveitador e vivia disso, pediu apenas que eu desse a minha palavra de que não a trairia e tudo que ela tinha também poderia ser meu. “Dou minha palavra”. Cruzei os dedos e beijei-os. Ela sorriu como jamais eu voltaria a ver. Surpreendia-me que uma mulher como ela, que já tinha visto de tudo na vida, ainda pudesse acreditar em promessas.

A vida nos apresenta poucos lances de sorte. Tinha plena consciência disso, estava diante dos meus olhos, podia tocá-lo. Sem filhos ou outros herdeiros, ou mesmo parentes que se opusessem a nossa união, passamos a morar juntos. Agora eu tinha carros, dinheiro a vontade, roupas sempre novas. Dora não se importava com minhas escapadelas noturnas, concordava que eu era jovem e precisava de alguma diversão além dela. O único limite intransponível, sob hipótese alguma, era ter uma amante que vivesse à custa do dinheiro que ela me dava. Não suportava a idéia desse tipo de traição, isso não era apenas desrespeitá-la, era tomá-la por imbecil. É mau negócio uma sanguessuga sustentar outra. Andava com mulheres diferentes, não mantinha vínculo com ninguém, não dava nem o número do telefone.

De fato o jogo parecia ganho, a vida boa acabara por me amolecer e depois de quase um ano sentia-me imensamente frustrado. Foi aí que surgiu Maíra, a empregadinha da casa que dormia lá durante a semana. Era uma moça jovem de pele morena queimada do sol, pernas torneadas escondidas atrás da saia e do avental, olhar acesso, atento a tudo que acontecia. Minha ocupação, então, passou a ser persegui-la pelos cômodos da casa. Logo ela entendeu a natureza do jogo e o aceitou. Tornei-me obcecado pela garota, pelo modo como me repelia e depois desejava, pelo cheiro acre do seu corpo e pelas marcas que ela em mim deixava. Passávamos os dias envolvidos nessa disputa, furtivamente, pelos cantos da casa, em qualquer horário, fosse madrugada ou cedo da manhã. Não sei se Dora desconfiava de algo, sei que quase não nos falávamos mais e tê-la ao meu lado era enfadonho e triste. Certa noite pediu que eu fosse ao banco sacar um dinheiro e depois a farmácia comprar um de seus tantos remédios. Na volta eu teria uma surpresa. Em segundos sai do torpor em que me encontrava e tornei-me lúcido de todos os vestígios que eu e Maíra vínhamos deixando há semanas.

Quando voltei, Dora estava maravilhosamente vestida, a mesa de jantar posta e sobre ela uma caixa embrulhada para presente. Sorri um tanto sem jeito e perguntei o que estávamos celebrando. Ela sorriu também, maneando a cabeça. Abra, disse, apontando para o embrulho. Abri e dentro da caixa havia um pequeno estojo marrom de alianças. Retirei-o de lá fingindo surpresa. Dora pegou o estojo, abriu a tampa, segurou uma das alianças e a colocou no meu dedo. Fiz o mesmo com ela, e, de mãos entrelaçadas, disse que me amava e nos declarou marido e mulher como se fosse o padre. Beijou-me a boca com languidez incomum. O jantar foi servido por Maíra que me olhava de soslaio com ar de deboche. Bebemos um vinho excelente, demos boas risadas, fizemos planos de viagens e continuamos bebendo. Minha apreensão arrefeceu.

Acordei com uma ressaca descomunal, sentindo muito frio e com a boca seca. A cama estava úmida, parecia molhada. Olhei para o lençol manchado de vermelho e senti no corpo um liquido espesso e pegajoso. Saltei da cama e vi Maíra deitado ao lado, nua, coberta de sangue e com a garganta atorada, quase separada do pescoço. Senti vertigem, tive vontade de gritar e chorar também, mas não o fiz. Rastejei até o banheiro e comecei a me lavar na pia, só depois atinei a ir para debaixo do chuveiro. Enquanto limpava o sangue fui colocando ordem nos pensamentos. Deveria ter ido embora quando tive oportunidade. Dora armou uma cilada. Deixou apenas Maíra de empregada na casa e de certo colocou algo na bebida. Pela profundidade do corte na garganta um homem deve tê-lo feito. O próximo passo é me incriminar, a polícia já deve estar a caminho. Vesti as primeiras peças de roupa que encontrei e sai sem levar nada além da imagem da menina degolada que um dia fora Maíra. Confuso, acabei escondido num hotel do centro da cidade. O crime ganhou as manchetes dos jornais e Dora estava desaparecida. Pensei que ela tinha me deixado lá com o corpo para que a polícia nos encontrasse, depois viria a público corroborar os fatos e livrar seu nome. Mas não o fez, continuava sumida e com isso passaram a acreditar que eu havia matado as duas. Mudei de hotel, fui parar nas imediações da Rodoviária. Sair da cidade era a melhor opção, talvez a única, no entanto não tive coragem de fazê-lo. Ser preso era uma questão de tempo. Um dia, ao despertar, encontrei uma carta no chão próximo a porta. Dentro do envelope um cartão branco trazia escrito com esmero: “até que a morte os separe”. Não estava assinado. Creio que de certa forma pude compreender Dora. Esperei. Então ouvi a série de batidas na porta. Depois novos golpes – um seco, outro fugaz. A surpresa desvaneceu, sabia o que viria a seguir.

2 comentários:

Daniel Rocha disse...

Legal, é um conto noir mesmo. Gostei da voz do narrador, e do diálogo rápido e subentendido do você deve ser um cafajeste, e ele: sou mesmo. Ele começa no fim, igual ao conto do Chet. Ação rápida, mais contada do que descrita. Um ano se passa. Cool.

Teu texto está crescendo. Segue firme. Abração!

Marcelo Martins disse...

Obrigado, meu guru.
Vamos marcar esse café pra conversar sobre o livro do Carol.
Abração