quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Intruso

A verdade é que não desejei ficar aqui vendo-o fazer nada. E esse é exatamente o problema: o nada fazer que nos desgasta lentamente, uma espécie de coma induzido que o mantém preso a esse lugar, sentado na poltrona reclinável azul marinho deformada pelo corpanzil que a pressiona. O livro quase colado ao rosto é um disfarce ridículo para um homem desse tamanho, é como se um elefante tentasse se esconder com uma folha de parreira. A esposa já havia desistido, não tinha mais palavras com que atacá-lo, de vez em quando, agora muito raramente, lançava-lhe uns olhares de ódio resignado. No entanto preferia dar o tratamento pelo qual ele tanto ansiou: o desprezo.

Contudo, após anos alguns anos de convivência, eu sei: ele também não queria estar ali atrelado a um metro quadrado de espaço e a um móvel inerte e velho. Havia um homem sob aquela forma pachorrenta de óculos, barriga saliente e calva avantajada ou, pelo menos, podia-se entrever que um dia existiu alguém pleno de vontade em seu lugar.

Ao vê-lo se atirar na poltrona tenho a impressão de que irá se desmanchar como a gema de um ovo numa frigideira, e escorrerá pela almofada até atingir o chão. Recompõe-se da melhor maneira que consegue e pega o livro de cima da banqueta, a mim parece sempre o mesmo livro de capa branca com um desenho borrado do rosto de um homem e logo abaixo o título em letras vermelhas. Vira os olhos para janela piscando com incrível freqüência, o pensamento lhe foge da cabeça e, convulso, chacoalha o corpo. Depois a cabeça pende para frente e demora a recobrar os sentidos.

Minha tarefa é vigiá-lo, porém, no começo, quando cheguei aqui, ele ainda idealizava que talvez pudesse fazer algo grandioso do resto de sua vida, algo do qual realmente se orgulhasse. Nos recônditos da sua alma havia uma vontade desorganizada, ínfima, porém desesperada, de tentar o que fosse necessário para obter os prazeres e o reconhecimento que lhe haviam negado a vida inteira. Pois foram esses os pensamentos que nos uniram. Ao invés de imaginar-se como era, a cara redonda e os olhos miúdos de miopia, via o meu rosto como se fosse o seu, falava com a minha voz, tomava de empréstimo meu corpo. Eu lhe dei uma sobrevida. No entanto, o que ganhei como retribuição foi o seu temor, olhares assustados de quem vê assombrações. Minha vontade é desligá-lo como se fosse uma televisão, puxar-lhe os cabos da tomada. Atemorizado ele sabe o que penso, e, inutilmente, enfia o rosto dentro do livro.

2 comentários:

Marcela disse...

Por DIOS! Lindo! Angustiante! Verdadeiro e Lúcido.

Marcelo Martins disse...

Olá Marcelita!
Thanks pelo comentário e Feliz 2011 de muita literatura para nós!
besos