sábado, 2 de outubro de 2010

Ventura

Vi a cena de relance: o homem de pés descalços, bermuda colorida e moletom roto, cor de sujeira, atravessa a rua impassível desafiando os carros em alta velocidade. Máquinas possantes conduzidas por gente apressada. Os carros param como se em reconhecimento a divindade que lhes cruza o caminho. O homem alcança a calçada do outro lado e segue num trote majestoso até sumir da minha vista.

Apesar da brevidade do encontro o reconheci. Dizem que ele já teve muito dinheiro, que foi dono de empresa ou advogado, que já dirigiu máquinas tão poderosas quanto as que acabara de intimidar, que já teve conta em banco – e só gerentes o recebiam, que tinha mulher e filhos. Um dia desci para fumar um cigarro na calçada do prédio onde trabalho e vi o homem todo desgrenhado fuçando no lixo. Quando me viu, veio em minha direção trançando os pés como se bailasse, ao invés de caminhar, e pediu um cigarro, porém, não o fez com palavras, mas levando os dedos aos lábios e soltando no ar uma fumaça inexistente. Não hesitei, dei-lhe o cigarro e o acendi. Ele me olhou com a rigidez obsessiva do destempero e foi se afastando sinuosamente como um caranguejo sem dar-me as costas. O porteiro veio me dizer aquelas coisas que eu disse antes, que ele teve dinheiro, um empresário, talvez advogado, que foi casado. Disse também que havia escutado por aí que ele ficou desse jeito por causa da cachaça, ou das drogas, ou ambos, que foi abandonado pela mulher, o filho pequeno morreu num acidente de carro. A verdade ninguém sabe. Seguido estava por ali dançando, tergiversando com sacos de lixo. Foi a primeira vez que tive contato com ele.

Chamei-o de Ventura, o mendigo, o Baryshnikov da calçada. Tinha unhas cumpridas e pretas de tão encardidas, uma barba rala que teimava em não crescer e a pele bem morena como que queimada do sol. Os pés sempre descalços. Não sei como resistia ao inverno. O porteiro disse-me que ele também já havia se questionado a mesma coisa inúmeras vezes, até que vasculhou a memória e percebeu que jamais o vira durante o inverno, apenas no verão. Deduzimos que ele abandonava a cidade com a chegada do frio e retornava junto com o calor. Provavelmente se escondia do inverno em alguma praia do Caribe. Ventura, o mendigo caribenho. As vezes aparecia com um copo de cachaça, nunca garrafas, e como um possesso executava passos de Tap Dance, batendo o solado do pés contra o chão. E por mais que tentássemos, não trocava palavra alguma conosco. Fumava os cigarros que eu lhe dava, fuçava no lixo e dançava. Nada mais.

Um dia Ventura sumiu e nunca mais apareceu. Simples assim. O porteiro disse que é exatamente isso que acontece aos mendigos. “Simples assim”. Até que o vi ressurgir atravessando a rua. Logo pensei que estava vendo-o pela ultima vez, que eu deveria ter parado o carro e ido até lá lhe oferecer um cigarro, confessar que eu imaginava – sim, era isso que eu pensava enquanto sorria vendo-o dançar - que de alguma forma, não saberia dizer como, poderia ajudá-lo a mudar de vida. Tentei descobrir como ele havia acabado nas ruas catando lixo, mas ele nada falava, creio que nem entendia. Apenas olhava-nos com seu rosto de mistério, com seu furor obsessivo de bailarino. Queria que ele partilhasse a sua dor comigo, mas não havia tristeza em seu olhar, nem alegria, nada. Será que Ventura escolhera aquela vida? Ao vê-lo cruzar a rua como um transatlântico soçobrando ao mar, me questionei se não estávamos todos vivendo o reverso do mundo, assim como ele, ou, talvez, Ventura tenha acreditado que vivia seu próprio sonho, contudo não entendera que a vida é o sonho de Deus.

Ventura foi parar nas ruas após entrar em surto com a morte de sua família num acidente de automóvel. Perambulou durante anos até ser reconhecido por um antigo fã dos tempos em que brilhava no palco dos Teatros. Ele o tirou das ruas, deu-lhe banho, comida e uma cama limpa. Nessa noite Ventura imaginou que estava de volta ao tablado, lugar do qual seu espírito jamais se afastara. Dançou novamente, leve e harmonioso como a bruma da manhã. O meu sonho terminaria assim e nele eu dançaria na rua num dia de chuva, tal qual Gene Kelly.

3 comentários:

Daniel Rocha disse...

Bonito conto. Um fundo de amargura, mas termina com esperança. Gostei do "trançando os pés como se bailasse" (visualizei o cara trocando as pernas pela calçada), e achei bem visual o gesto do pedir cigarro do mendigo.

Pensei nele se imaginando no tablado, "lugar do qual seu espírito jamais se afastara". Pois é, a paixão não se muda.

Abraços e continue resistindo!

Marcelo Martins disse...

Nobre mesário!
Na verdade o que eu queria de verdade era dançar como o Gene Kelly no Cantando na Chuva! me amarro naquele filme! obrigado pelo incentivo de sempre.

Abração

Daniel Rocha disse...

Legal.

Agora sou teu 13° seguidor.

PS – Se a entrevista da semana passada render frutos, já estou escolado. Fiquei de pé das 7 da manhã até às 6 da tarde ontem, recebendo carteiras de identidade e títulos eleitorais.