quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Alice

Fábio sai do quarto deixando a porta entreaberta. Acende um cigarro e fica no escuro observando a brasa arder.

- Não agüento mais esse colchão, está acabando com a minha coluna. ttssc... Preciso parar de fumar.

Dá mais algumas tragadas e amassa a bituca no velho cinzeiro de plástico. Volta para o quarto e logo repara as janelas abertas, a cama vazia. Alice não está. O cérebro não compreende o que vê. Olha ao redor e não encontra nada. Fábio era um homem pragmático, acreditava na lógica. Aquilo que não possuía esse atributo não merecia crédito. Caminha até a janela decidido a fechá-la, mas antes tenta prender as cortinas que se agitam no ar. O vento que entra da rua é gelado. Este pequeno detalhe - o vento gelado no rosto – e o inesperado sumiço de Alice aparentemente desprovido de significado fazem-lhe sentir um arremedo de raiva, um desprezo quase infantil. Talvez ela estivesse em outra parte da casa se escondendo, fazendo jogo, talvez tentando seduzi-lo. Talvez. Mas ele não gostava de surpresas. Fábio apreciava como ninguém a ordem. Ajeita as calças do pijama e distrai-se ao contemplar o formato que as nuvens adquirem com a rajada de vento. Enquanto se regozijava brevemente com essa visão, Alice surge do escuro num pique desatinado e joga-se contra ele. A janela bate algumas vezes com força tirando da madeira um grito estridente. O corpo de Fábio paira no ar numa infinidade de segundos como se pudesse voar. Fábio sabe voar, pensa Alice. O som do corpo chocando-se contra o chão é tão violento que poderia acordar toda a vizinhança e mais alguns quarteirões. Alice fita o céu azulado.

Fazia um belo dia lá fora apesar do frio. A bruma da noite anterior se agarrava nas árvores e no gramado dos quintais. O sol se erguia aos poucos distendendo seus braços raiados sobre a terra, refletindo um pouco na poça de sangue que circundava Fábio. Sentia o corpo dormente, não conseguia movê-lo, não entendia o que estava acontecendo. Era como se sua consciência houvesse se fragmentado em duas partes; uma presa ao corpo e outra a cabeça, no entanto não podiam comunicar-se. A cabeça mandava o corpo mover-se do chão. O corpo, sem sucesso, dizia para Fábio despertar. Teve o desejo de falar, chegou até imaginar que estivesse falando, mas não conseguia discernir os pensamentos. Os dedos da mão esquerda batiam ininterruptamente na calçada. Sentiu-se cansado. Teve vontade de fechar os olhos.

Alice voltou para cama, fechou os olhos e deixou que a mente fluísse. Percorreu todas as peças que compunham o quebra cabeça de sua vida, os mistérios e atos que haviam lhe trazido até o presente momento. Relembrou algumas músicas e pensou nos livros que havia lido quando jovem. Viu inúmeros rostos e dentre eles reconheceu Fábio. Os olhos lúgubres e silenciosos, a barba cerrada, os sulcos que marcavam a face morena. Aquela imagem distante estava arraigada à sua memória como se fosse a extensão de um braço, e a consciência desse fato lhe causou estranhamento. Durante todos aqueles anos fora assombrada pela certeza de que as coisas jamais mudariam. Era um nó na garganta, um suspiro que escapava sem querer. A mesma casa, as mesmas cores, os mesmos convidados nas festas de Natal. Não entendia porque se entregar à complexa e vã necessidade de cumprir todos os rituais daquela vida comezinha e perceber que não havia nada de humano naquilo, nada que lhe trouxesse o frescor ou mesmo a agonia de estar viva. E assim foram os domingos de almoço, as intermináveis tardes de chá, as noites vazias. Sorrisos ecoavam como fantasmas pelos cômodos desabitados da casa. Para outras pessoas o futuro podia até ser impenetrável, para Alice era real. E tudo que ele havia trazido era uma pequena propriedade na praia. Uma casa branca com janelas verdes encravada na encosta de um morro, de frente para uma praia imensa de águas turvas e geladas que açoitavam as pedras. A visão se perdia entre o céu e o mar, tudo parecia demasiadamente distante. Por todos os lados via-se apenas solidão. Alice era o refúgio do mar.

O resto era trocar objetos por outros objetos e todos tinham seu tempo definido e desapareciam sem deixar nenhum vestígio. Assim devia seguir a vida. Talvez a única coisa que pudesse alterá-la fosse a morte. Não interessava quem fosse morrer, mas só através dela poderiam ver o quanto desejaram e pouco que haviam conseguido. No entanto esse dia não veio. Desde então Alice não pôde mais dormir tranqüilamente, não pôde nem mais sonhar. Parecia que o ar não lhe chegava aos pulmões. Tinha a sensação de estar se transformando em mármore. Fábio nunca se esforçou para compreender além daquilo que via. Não entendia a aflição muda que consumia Alice, seu olhar absorto em algo que nunca estava lá. Aquele silêncio também acabou por envolvê-lo. Fábio não podia tocá-lo e passou a sentir um desassossego que lhe cortava a alma e reconheceu em Alice a origem do seu mal estar. Tornaram-se estranhos num mundo sem portas. Mas agora nada disso importava.

Naquela manhã Alice adormeceu tapada de cobertas até o pescoço, quase não conseguia respirar. Deitada na cama, que agora lhe parecia muito grande, foi acolhida por um sentimento tão terno e familiar que imaginou estar em sua antiga casa, quando ainda era uma menina de olhos miúdos. Dormiu assim até escutar o som da campainha e a multidão de vozes e passos que se aglomeravam na soleira da porta.

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