quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

terça-feira

Não sei se mantenho o guarda-chuva fechado ou aberto. Parece que ele além de reter a chuva, segura também em suas hastes a passagem do tempo, mas é difícil mantê-lo aberto enquanto caminho. Há vento na chuva, ou, talvez, o contrário, há vento demais nessa chuva miúda e teimosa. Desvio das armadilhas nem tão brandas da calçada; lajotas em falso, mármores partidos, pessoas deitadas no chão e um pouco de lixo deixado para trás pelo caminhão da coleta. Penso, enquanto caminho, porém não medito sobre o ato de caminhar, ele é involuntário, se determina por leis próprias, que estamos todos imbuídos desse sentimento infatigável de perda e solidão. Apesar disso, ou, talvez por isso, ele, esse sentimento difuso, que não é simples nem único, é que o que liga nossos guarda-chuvas vermelhos num frêmito de compaixão.

Acabo de ouvir estampidos de tiros. Sim, tenho certeza, o som é inconfundível. Vejo através do recorte da janela pessoas saindo das lojas e escritórios, invadindo as calçadas, curiosos e incrédulos, talvez compadecidos, para assistirem o resultado da tragédia que suponho ter acontecido, ou, talvez, simplesmente temerosos de que o mesmo fim os aguarde. Pensam, sem muita convicção, que existe sim uma maneira de evitá-lo, que essas coisas, eventos trágicos e violentos, ocorrem apenas com certo tipo de pessoas. Nunca conosco, com os que são próximos, com os que amamos. Nunca se está suficientemente preparado para qualquer situação, nem felicidade extrema ou desgraça aviltante, nem para a morte ou nascimento, por entre nossas bem erguidas linhas de defesa infiltra-se, silenciosamente, como um vírus, a presença insidiosa do inevitável.

Ouço as sirenes da polícia, ambulâncias, o tráfego é interrompido. Alguém agoniza lá fora, na calçada úmida da João Pessoa. Ainda resta mais da metade do tempo desta terça-feira. A tarde será longa, preguiçosa e arrastada como as tardes devem ser, o almoço nos convida ao sono, mas o relógio nos impele ao trabalho. A chuva, mesmo persistente, é pacifica, em contraste a nós próprios, ainda que aposentados, soldados da fortuna, hoje empunhamos guarda-chuvas, não mais a lança. Alguém deixou escrito numa página: a existência não é a perfeição, mas é necessária.

Um comentário:

Daniel Rocha disse...

Fiquei pensando nos dois momentos do conto: um mais interno, em que soou bem a condução de pensamentos do personagem, ao descrever uma cena simples de caminhar pela calçada; depois os tiros (assalto, assassinato?), a ação externa, e a indiferença do personagem, que segue a caminhada e a vida, dá pra sentir o vazio do cara.

Lembrei da mudança de ação interna x externa que tu comentou certa vez na minha história, do primeiro até o terceiro capítulo. Parece que, como aqui, a história se acelera, mas talvez seja isso o que ela pede.

Obrigado por manter a chama acesa. Abraços com Redman e solo de sax!