domingo, 13 de março de 2011

Os desaparecidos

Atento ao barulho que vinha do corredor, denunciando um sobe e desce intenso nas escadarias do prédio, o homem, o vizinho do 302, conhecido pelo outros moradores como o esquisito, ou aquele que não cumprimenta ninguém, ou ainda tido como esnobe, decidiu averiguar com seus próprios olhos o que estava acontecendo. Antes ligou para a sua ex-mulher dizendo que algo estranho estava a ocorrer no prédio. Ela lhe mandou a merda, disse que a deixasse em paz, não bastava o inferno que ela tivera de passar ao seu lado? Queria agora lhe torturar também? Chocado com a reação hostil da mulher, ligou para o sindico do prédio que, surpreso, não imaginava como ele, o esquisito, tinha o número do seu telefone se ele não falava com ninguém?

O que? Respondeu o síndico com a voz embargada de sono. É isso mesmo, um assalto no prédio. Assalto no prédio? Repetia o síndico. Estão roubando os apartamentos do ultimo andar, eu ouvi tudo. Não, eu não estou ouvindo nada, mas faz o seguinte: chama a polícia. Não, nada de polícia, polícia não. Nós temos que pegá-los em flagrante. Nós? Não. Você está maluco, fica dentro de casa, não é nada. Fica quietinho aí.

O síndico desligou o telefone, se dirigiu à janela, abriu bem os vidros e colocou a cabeça para fora de maneira a aguçar os sentidos auditivos. Ouvi alguns rumores, uma espécie de som abafado, como se fosse uma voz tentando gritar, porém sendo tapada com a ajuda de algum pano, ou talvez com as mãos. Não é nada, deve ser uma festinha, apenas jovens se divertindo. Melhor voltar a dormir.

O vizinho do 302 percebeu que estava por sua própria conta e risco, que havia chegado a hora, o país lhe chamava a ação. Abriu a porta suavemente sem fazer nenhum barulho, e logo viu homens em trajes civis, de óculos escuros, retirando nas costas pessoas com as mãos amarradas e capuzes na cabeça. Não levavam móveis, nem eletrodomésticos, nem caixas de jóias ou cofres de dinheiro. Respirou aliviado, ainda bem, eram apenas os seqüestradores. Fechou a porta e tratou de dormir.

5 comentários:

Rubem Penz disse...

Marcelo,
Gostei da trama, do arrastar-e-acelerar, do enredo. Parabéns! Tens ótimo olho para encontrar as migalhas. És cronista!
Abraços,
Rubem

Marcelo Martins disse...

Obrigado, Rubem!
Aguardo a abertura da oficina.

Abraço,
Marcelo

Daniel Rocha disse...

Caro Mr. Martins,

legal a virada final, um pouco non-sense, de o cara não se chocar com algo que teoricamente é um absurdo (o sequestro). No segundo parágrafo, lembrei de um livro da Hilda Hilst, Estar Sendo. Ter Sido., que é construído assim, os personagens e suas falas trocam a cada frase.

Gravei hoje o "No room for squares", grande momento de Hank Mobley, e tomei mais um pouco do café uruguaio. Falta pouco para o outono agora.

Send news, my friend. Obrigado por continuar resistindo.

Marcelo Martins disse...

Meu amigo, Mobley,

Fiquei ansioso para responder este comentário.
Primeiro agradeço, depois digo que fico contente porque atingi em parte o que vislumbrei para o conto quando o escrevi. Captaste muito bem a idéia do absurdo, mas talvez te pareça non-sense porque eu não desenvolvi, não contextualizei, a situação, ou a chamada história oculta. Apenas o título e a descrição do seqüestro, além de revelar que são seqüestradores, não foram suficientes para situar o contexto e a referência ao estado de terror da ditadura militar, tanto a brasileira quanto a argentina. Pois era justamente assim que se davam as detenções clandestinas: no meio da noite, por policiais ou militares em trajes civis, sobretudo durante a ditadura argentina, retirando as pessoas de suas casas com as mãos amarradas e capuzes na cabeça. Muitas dessas pessoas foram mortas, não sem antes serem torturadas, e depois dadas como desaparecidos políticos, um eufemismo para dá-los como mortos, assassinados, brutalmente assassinados. O vizinho representa a população que de um modo geral, tomada pelo medo, ou pela complacência, fazia vistas grossas para o horror que se desdobrava diante de seus olhos, assim calava. E até mesmo setores da sociedade que apoiavam a ação terrorista do estado, que enriqueceram em negociatas com os militares, que colaboravam delatando pessoas. Uma época lamentável e violenta da nossa história, mas meio esquecida como tudo no Brasil, para acreditarmos que não foi bem assim, que não foi tão ruim. Gracias pela leitura. Abração.

Daniel Rocha disse...

Bah, não tinha pensado em nada disso..:) Mas é muito louco a gente reler um texto, e "já saber" o que o autor quis dizer. Pensando agora, tem um clima de conspiração no ar contra o vizinho, tipo não é nada, não se preocupe. Aí o síndico quer ligar para a polícia, mas a polícia seria o último lugar para o qual um revolucionário (se bem entendi o personagem principal) ligaria.

Mas fiquei na dúvida, quando ele diz que o país estava o chamando, me pareceu que a Revolução o estava chamando - ou seria o exército? Mas os sequestradores/militares não levaram ele, e sim seus vizinhos; talvez esses sim fossem os revolucionários.

Bom, provavelmente também não foi isso que tu quis dizer..:) mas gostei, porque esse texto dá pano pra manga. Permite outras leituras, e esse é um dos grandes baratos da (boa) literatura.

Daqui a pouco vou gravar o Boppin' do Chet Baker. No aguardo de mais comentários sobre literatura (e, quando puder, "daquela" tua leitura), me despeço.

Abraços e que venha o coffee com letras!