quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Parte II

Fechou a porta, tirou os sapatos e lançou-me um olhar indecifrável antes de perder-se na penumbra da área de serviço. Pegou a toalha e envolveu-se nela de maneira que pudesse encobrir sutilmente uma parte do rosto. Cruzou a sala como que se escondendo de alguém. Este alguém sou eu, sentado no sofá. E não há como passar despercebida, nem me evitar nesse espaço um tanto vazio. Tenho o pressentimento, nada mais que isso, de que algo aconteceu, uma coisa nova, diferente das que habitualmente acontecem quando ela volta tarde da noite e vai direto para o banho com a toalha envolta nos ombros, encobrindo uma parte do rosto. Escuto o barulho da água caindo no chão enquanto as luzes do apartamento sofrem pequenas quedas de energia, instabilidades devido à sobrecarga do chuveiro. Sem conseguir defini-lo, o pressentimento que antes era uma espécie de névoa, aos poucos abandona seu estado etéreo adquirindo densidade. O banho termina e a luz retoma a normalidade. Meu coração acelera como se ele agora recebesse descargas elétricas. Penso em várias formas de abordar o assunto - não sei, não tenho certeza - no entanto recuo diante da possibilidade de ouvir uma resposta qualquer que logo em seguida será negada pelo seu corpo. Ela senta na poltrona de vime á minha frente, pernas encolhidas e olhos borrados de lápis preto, indecifráveis. Não recordo como viemos parar nesse apartamento tão vazio. Parece que tudo se resume a esse presente morto, sem espaço para mais nada, nenhuma realidade diferente desta. Não temos nem um talvez - talvez alguma coisa. Já sei o que ela irá dizer. A poltrona range quando ela muda a posição das pernas. Ajeita os ombros e inspira longamente deixando escapar um suspiro. Ainda não quero ouvi-la e mantenho os olhos fixos num ponto qualquer da parede. Sinto o peso do seu corpo quando ela senta ao meu lado no sofá, vejo seus dedos finos repousarem na minha perna. Tudo é silêncio e espera.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parte II. Isso significa que faz parte de um texto maior?
Gostei dos contos(?), parabéns!
Abraço

Marcelo Martins disse...

Olha, não tinha pensado nisso quando escrevi. Talvez desenvolva a idéia.
Obrigado pela visita!

Cristiane Cougo disse...

Tão íntimo e próximo a parte II, quem sabe a parte I, que me parece ser o todo de uma parte de tantas partes quando vivemos a dois.
Besos